O canto de Cecília Meireles – entre o efêmero e o eterno
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo: – mais nada. (Cecília Meireles
Maria de Fátima Gonçalves Lima
A linguagem poética é um processo de seleção, preparo e busca da polissemia vocabular. A poesia nasce do amadurecimento das ideias, porque não é fruto da simples inspiração.
Cecília Meireles se embrenha senhora de si, nas veredas da arte poética, no reino sagrado das palavras e descobre seus mistérios, seus sentidos e sua pluralidade. A artista desvela com habilidade, os segredos da linguagem e, como operadora da língua, experimenta os atos de uma transformação alquímica, resultado de sua imperiosa sensível criatividade e visão contemplativa da vida.
A poeta usa os cinco sentidos e, através de sinestesia, expressa o mundo. Este artifício é realizado através de um jogo de palavras, armadilhas linguísticas que elevam a arte ceciliana à atmosfera de transcendência.
Neste trabalho, pretende-se trazer algumas reflexões sobre o espírito poético que envolve os textos dessa artista da palavra. Por meio de algumas análises e comentários sobre a temáticas da escritora, abro as brechas para o desvelamento desse espaço alquímico, que tem o poder de transferir aos leitores e aos observadores, o prazer de contemplar a vida e a arte poética.
O lirismo de Cecília Meireles
Cecília Meireles não se filiou radicalmente a nenhuma das correntes modernistas, produzindo uma poesia lírica cujas raízes estão na tradição luso-brasileira.
O lirismo decorre da preocupação do poeta com o seu próprio “eu”, o que torna evidente o predomínio da subjetividade neste tipo de poesia. A poesia lírica é, portanto, a expressão do mundo interior do artista e não do mundo exterior. A realidade objetiva só interessa ao lírico na medida em que funciona como estímulo que desperta emoções, sentimentos, opiniões e reflexões. Pode acontecer, ainda, que a realidade objetiva se apresente ao poeta como uma projeção de seu próprio “eu”.
A poesia de Cecília Meireles situa-se nesta perspectiva de lirismo em que a captação da realidade exterior se dirige principalmente para os elementos móveis e etéreos, nos quais, segundo Antonio Candido “o poeta projeta a desintegração de si mesmo ou busca o próprio reconhecimento”.(CANDIDO; CASTELLO, 1968, p. 114).
É claro que, ao recriar poeticamente o mundo objetivo, o escritor incorpora à expressão dados de sua sensibilidade e de suas reflexões, deixando transparecer uma determinada visão de mundo. Em Cecília Meireles, essa visão de mundo se revela.
Preocupação com a fugacidade do tempo e com a precariedade das coisas e dos seres, e a consciência da imortalidade através do poético
Os dois antológicos poemas de Cecília Meireles, “Motivo” (p. 11) e “Retrato” (p. 13) são marcados por uma preocupação constante em sua obra que é a fugacidade do tempo.
Enquanto “Retrato” se caracteriza como poema intimista, introspectivo, “Motivo” é um poema em que Cecília Meireles faz uma reflexão sobre o próprio ato de escrever, sobre a própria arte poética.
A essência de “Retrato” é a descoberta da fragilidade e da fugacidade do tempo. Diante da consciência dessa fragilidade decorre o tom melancólico do eu lírico que afirma: ‘Eu não tinha este rosto de hoje,/assim calmo, assim triste, assim magro/nem estes olhos tão vazios, /nem o lábio amargo.//Eu não tinha estas mãos sem força,/tão paradas e frias e mortas;/eu não tinha este coração/que nem se mostra./Eu não dei por esta mudança,/tão simples, tão certa, tão fácil:/– Em que espelho ficou perdida/a minha face?” (MEIRELES, Cecília. 1996. p. 13)
A partir do primeiro verso, o ritmo do poema é reforçado por uma repetição estilística e melancólica que conota um desencanto diante da inexorável descoberta: “Eu não tinha este rosto de hoje, / assim calmo, assim triste, assim magro”. Observe que a descoberta da situação do rosto é acentuada pela expressão “assim”, que reiteradamente é acompanhada de três adjetivos “calmo”, “triste” e “magro” que modificam o rosto e revelam a amargura do ser. Em seguida, vem a conclusão da mudança “tão simples”, “tão certa”, “tão fácil”. Esta constatação é reforçada pelo tom tristonho e intensivo repetido gradativamente.
Na segunda estrofe, o eu-poético continua a sua viagem reveladora. Agora são suas mãos que são vistas “sem força, / tão paradas e frias e mortas”. Mais uma vez aparecem três adjetivos transformando o estado das mãos, numa adição gradativa que leva ao fim e a um coração pétreo, sem vida.
A temática da rosa, tradicional desde a Idade Média, é retomada na obra ceciliana. A rainha das flores é um símbolo da figura fugaz, mas exprime o espírito, a pureza, a ressurreição, a imortalidade, a vida e a morte. Exprime também a perfeição. Os Alquimistas nos deixaram a observação que só entreabrindo suas pétalas, poderiam revelar o seu mais íntimo segredo da vida que estava prestes a perecer. Exprime a vida bela e passageira.
O nome Rosa-Cruz está associado ao símbolo hermético do Cristo. Para os adeptos da Rosa-Cruz, a cruz contém os opostos em suas partes: Feminino e Masculino, Lua e Sol, Morte e Vida. Quando esta vivência de opostos (o horizontal e o vertical) se encontra em um ponto de intersecção, acontece a Iluminação. Esta intersecção (Centro, ponto de Unidade) da cruz (Corpo), saúda o Sol e uma rosa colocada neste centro, no peito, permite que a Luz ajude o espírito a desenvolver-se e florescer. Em seu símbolo ora colocam a rosa na intersecção, ora no alto da cruz.
Para os esotéricos a Cruz é um signo masculino e espiritual, divina energia criadora que fecundou a matéria da substância primordial cuja imagem é a Rosa, que se inscreve nas quatro dimensões: comprimento, largura, espessura e tempo. A mente associada à Rosa apresenta subdimensões e forma: matéria, cor e perfume, reunidos na mais completa harmonia sendo defendidos pelos (guardiões) espinhos. Rosa, simboliza, portanto, o centro místico e o coração.
Segundo Jean Chevalier & Alain Gheerbrant:
Na iconografia cristã, a rosa é ou a taça que recolhe o sangue de Cristo, ou a transfiguração das gotas desse sangue, ou o signo das chagas de Cristo. Um símbolo rosa-cruz apresenta cinco rosas, uma no centro e uma sobre cada um dos braços da cruz. Essas imagens evocam o Graal ou o orvalho celeste da redenção. E, já que citei os Rosa-Cruzes, observe que seu emblema coloca a rosa no centro da Cruz, isto é, no lugar de Jesus. Este símbolo é o mesmo da Rosa Cândida da Divina Comédia, que não pode deixar de evocar a Rosa Mística das litanias cristãs, símbolo da Virgem; talvez também o mesmo do Romance da Rosa. Angelus Silensius faz da rosa a imagem da alma, e ainda a imagem de Cristo, de quem a alma recebe a marca. A rosa de ouro, outrora abençoada pelo Papa no quarto domingo da Quaresma, era um símbolo de poder e de instrução espirituais, mas também, é claro, um símbolo de ressurreição e de imortalidade.
A rosácea gótica e a rosa-dos-ventos marcam a passagem do simbolismo da rosa ao da roda.
É preciso enfim observar o caso particular, na mística muçulmana, de um Saadi de Chiraz, para quem o Jardim das Rosas é o da contemplação: Irei colher as rosas do jardim, mas o perfume da roseira me embriagou. Linguagem que a mística cristã não recusaria de nenhuma maneira, como comentário do Cântico dos Cânticos sobre a rosa de Saron. (Op. cit. Chevalier J. & Gheerbrand (1990) p. 788)
A rosa é cantada em vários poemas de Cecília Meireles, denominados de “Motivos da rosa” e marcados por ordem. Temos aqui o “1o motivo da rosa” (p. 69): “Vejo-te em seda e nácar, /e tão de orvalho trêmula, /que penso ver, efêmera, toda a Beleza em lágrimas/por ser bela e ser frágil. //Meus olhos e ofereço:/espelho para a face/que terás, no meu verso, /quando, depois que passes, /jamais ninguém te esqueça. / Então, de seda e nácar, /toda de orvalho trêmula, /serás eterna. E efêmero/o rosto meu, nas lágrimas/do teu orvalho… E frágil.” (p. 69).
Na primeira estrofe, o eu lírico apresenta a beleza e a fragilidade da rosa, o alvo de sua contemplação. Ao contemplá-la, valoriza-a por seus olhos de artista, tornados espelhos capazes de refleti-la – não visualmente apenas – mas, principalmente, no verso.
A poetisa tenta superar a tensão entre o belo e o transitório, pela recriação da rosa por meio da construção poética. Desta forma, a rosa, no aspecto físico, inexoravelmente acabará. Porém, a criação poética da artista é imortal e o fato de a rosa ter sido cantada em versos é uma condição para que esta também alcance a eternidade. A poesia é uma rosa eterna, que renasce em cada leitura.
Assim, como a rosa, a poesia de Cecília tem a beleza, o amor, a perfeição poética, a espiritualidade e a poder de renascimento. Sua poesia é um coração que pulsa vida e imortaliza o efêmero.
O poema “Motivo” tem esta mesma visão sobre a imortalização através do poético. Neste antológico texto existe o depoimento de Cecília Meireles sobre o poder de perpetualização do canto poético:
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
mais nada.”
(Idem p. 11)
Ao longo do poema, Cecília Meireles demonstra a certeza da fragilidade diante do tempo: “Irmão das coisas fugidias […]/ atravesso noites e dias/ no vento”. Porém, se o tempo é passageiro, a sua “canção é tudo. / Tem sangue eterno e asa ritmada”. Isto é, tem a alquimia do poético que conduz à imortalidade do artista e a leveza do ritmo encantador do poema. A poetisa sabe que quando seu corpo não mais existir, sua poesia ficará nos livros, nas almas amantes da arte, nos campos, nas flores, nas montanhas, no vento, na vida. Ela deixa ao mundo um legado: seu texto ritmado, poético e eterno. Desta maneira, “Motivo” é um poema sobre a própria poesia, pois discute metalinguisticamente o valor da obra literária e expressa que só a arte é eterna. Tudo passa, a arte fica; o homem é finito, a arte é imortal.
A vida só é possível reinventada
Para Cecília Meireles, criar é a razão de viver. Este testemunho renova-se em versos como os de “Aceitação” (Idem p. 17), em que a autora assume o destino das cigarras que, semelhante à poetisa, vivem para o seu canto, e este as imortaliza; ou em texto inteiro como “Reinvenção” (Idem p. 48), que testemunha o poder da criação poética. Vejamos alguns versos deste poema: “A vida só é possível/reinventada. //Anda o sol pelas campinas/e passeia a mão dourada/pelas águas, pelas folhas…/Ah! tudo bolhas/que vêm de fundas piscinas/de ilusionismo… – mais nada. (…)Não te encontro, não te alcanço…/Só – no tempo equilibrada, /Desprendo-me do balanço/que além do tempo me leva. //Só – na treva, /fico: recebida e dada. //Porque a vida, a vida, a vida, /a vida só é possível/reinventada.”(Idem p. 48-49).
O poeta não é um ser privilegiado, diferente dos outros; não é apenas uma pessoa muito sensível que vive de sonho e de inspiração; é, antes de tudo, um artista da palavra, um trabalhador da linguagem que deve ter elevada técnica e bom gosto. O poeta é, principalmente, um criador, pois dá nova vida às palavras, inventando assim uma nova linguagem capaz de dizer o indizível.
Cecília Meireles poetiza sobre a própria criação literária, quando afirma que a vida só é possível reinventada. Ora, a vida, as coisas e as palavras em estado de dicionário são abstratas, antes de serem percebidas e sentidas pelos homens. O poeta, através do seu trabalho linguístico e criativo, re(vela), reinventa e dá vida ao mundo.
O processo da criação literária é semelhante ao da criação do universo; antes da criação era o caos, as trevas: “No princípio existia o Verbo, e o Verbo estava com Deus… Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens, e a luz resplandece nas trevas… E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós. (Op. cit. BÍBLIA SAGRADA, João 1:1-3. 2012, p. 1310)
O artista, por meio de uma luta diuturna, de um trabalho contínuo com a palavra, com o vernáculo, o verbo, adquire um poder demiurgo de organizar o caos do silêncio e da falta de vida das palavras em estado de dicionário. Ao criar o poema, o poeta consegue vivificá-las, reinventá-las. Nesse sentido, o artista literário é um criador, um deus que dá vida ao verbo, recriando a sua polissemia, explorando sua música, ritmos e todas suas possibilidades criativas.
No poema “Reinvenção”, a poetisa observa o sol, as campinas, as cores, as águas, as folhas, a luz, as trevas, ou seja, a vida, depois re(vela) sua visão e percepção desta vida através do verbo inusitado. Utilizando as palavras, a poetisa cria novas significações, novas interpretações, novas metáforas. Nos versos “Anda o sol pelas campinas/ e passeia a mão dourada […]” Cecília Meireles apresenta a bela metáfora que mostra o sol com sua mão dourada pelas campinas, pelas águas, pelas folhas. Desta forma, a simples visão da luz do sol foi recriada e reinventada de uma maneira singular, poética, que faz a criatura humana acordar de uma espécie de sonambulismo, uma vez que o homem vive mergulhado no cotidiano, na pressa, na insensibilidade e não percebe facilmente a magia das coisas da vida e, a beleza que está dentro da possibilidade de visão e criação.
Diante do exposto, o canto poético ceciliano reinventa a vida e oferece aos homens o que há de mais belo na arte de viver e de criar outros mundos: o universo das palavras.
O sangue eterno e a pluralidade dos versos cecilianos
Quando se lê um poema de Cecília Meireles, percebe-se que ele contém um encantamento. Algumas vezes tem-se vontade de relê-los. Mas é difícil perceber, de imediato, quanta elaboração existe no texto. É preciso ler o poema várias vezes, de maneiras diferentes, para descobrir sua polissemia. Observe a pluralidade semântica e o encanto do poema “4o Motivo da rosa” (Idem p. 78): “”Não te aflijas com a pétala que voa:/também é ser, deixar de ser assim.//Rosas verás, só de cinza franzida, /mortas intactas pelo teu jardim. //Eu deixo aroma até nos meus espinhos, /ao longe, o vento vai falando em mim. //E por perder-me é que me vão lembrando, /por desfolhar-me é que não tenho fim”. (p. 78)
A polissemia dos versos está demarcada a partir do título do poema. A autora enfatizou o tema da rosa, motivo de vários poemas. Este é o 4o motivo. Levando em conta a simbologia do número quatro, que representa os elementos do mundo: terra, fogo, ar e água e, observando ainda as referências aos quatro pontos cardeais, quatro ventos, quatro pilares do universo, quatro fases da lua, quatro estações e as quatro letras do nome de Deus, concluímos que este “4o motivo da rosa” é muito especial. E, de acordo com Chevalier, o quatro simboliza “a totalidade do criado e do revelado”. Desta forma, este quarto motivo conota a magia do quatro e sua alusão à criação poética.
Se numa leitura simples, à primeira vista, os versos parecem referir-se a uma realidade simples e conhecida que é o desfolhar de uma rosa e a perda de sua beleza, esta interpretação se modifica se nos detivermos numa análise ampla. Aí, então, veremos a grandeza de sua expressão. Perceberemos que o texto nos apresenta uma realidade preocupante, que é o inexorável passar do tempo, a finitude.
Desta observação, a poetisa nos dá uma preciosa lição: é preciso que o rejuvenescimento do espírito se contraponha ao envelhecimento físico. Só assim é possível viver realmente a vida em toda a sua extensão, ou seja, é a fórmula com a qual se consegue deixar “aroma até nos espinhos” porque, enquanto o tempo passa, a pessoa vai, de forma lenta e contínua, se realizando como ser, vai sendo lembrada: razão pela qual a poetisa apresenta o verso “o vento falando de mim”.
A lição de vida apresentada é análoga a uma figura materna que, na sua missão de viver e dar a vida vai-se transformando e se transubstanciando nos filhos, numa corrente de vida/morte, dor/alegria. A mãe se entrega de corpo e alma para buscar sua imortalidade vivendo através da presença viva dos filhos.
Este texto expressa, mais uma vez, a ideia comentada no item anterior de que Cecília Meireles entende a criação como razão de viver, e que se preciso for, a poetisa pode até morrer de cantar, como as cigarras. É o que afirmam os versos de “Aceitação”: “Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:/ não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.” (Idem p. 17)
Para Cecília Meireles a criação poética é doação, é um desfolhar, é vida, é morte; são os quatro elementos, fogo, terra, ar, água; é o mundo, é tudo o que há de sagrado.
Chevalier e Gheerbrant acrescentam que: “A rosa, por sua relação com o sangue derramado, parece ser frequentemente o símbolo de renascimento místico: Sobre o campo de batalha em que caíram numerosos heróis, crescem roseiras e roseiras bravas. Rosas e anêmonas saíram do sangue de Adônis, enquanto o jovem deus agonizava. É preciso, que a vida humana se consuma completamente, para esgotar todas as possibilidades de criação ou de manifestação se vem a ser interrompida bruscamente, por uma morte violenta, tenta prolongar-se sob uma morte violenta, sob uma outra forma: planta, flor, fruta”. (Op. cit. CHEVALIER J. & GHEERBRAND (1990) p. 788)
Observando tudo isto, damo-nos conta do sentido transcendental que os versos do “4o motivo da rosa” oferecem, tirando-nos do meramente contingente para transportar-nos às esferas espiritualizadas da vida humana. E isso foi possível graças ao poder sugestivo e plurissignificante das palavras que se espraiam em significados superiores àqueles abstratos que elas ordinariamente oferecem no dicionário, adquirindo, desta forma, um sentido concreto; “um sangue eterno” que somente os poéticos e polissêmicos versos cecilianos são capazes de produzir. Seus versos possuem a magia de transformar o efêmero em eterno.
A contemplação do mundo
A noite segue o dia. As estações do ano sucedem umas às outras. As plantas nascem, crescem e morrem. Diante deste espetáculo cotidiano da natureza, o homem – filósofo – poeta, ser sensível – pode manifestar diversos sentimentos: medo, resignação, incompreensão. E, também, espanto e perplexidade – sentimentos que acabam por conduzi-lo à poesia filosófica, contemplativa. Cecília Meireles mostra-nos que o mundo é para ser contemplado, retratado e poetizado. Seus poemas descritivos assemelham-se a instantes de uma paisagem ou cena do cotidiano, como “Contemplação” (Idem p. 59), “1o motivo da rosa” (Idem p. 69), “2o motivo da rosa” (Idem p. 71), “4o motivo da rosa” (Idem p. 78), “5o motivo da rosa” (Idem p. 79), “Elegia a uma pequena borboleta” (Idem p. 83), “Pássaro” (Idem p. 89), “Os gatos da tinturaria” (Idem p. 99), “Faisão prateado” (Idem p. 103), “Imagem” (Idem p. 107), “A flor e o ar” (Idem p. 108), entre outros. No poema “Sugestão” (Idem p. 63) o eu poético sugere que devemos ter a natureza como exemplo; ter sua calma, sua imparcialidade e sua verdade. Sugere, portanto, que sigamos o exemplo da natureza e não o dos homens: Sede assim – qualquer coisa/serena, isenta, fiel. /Flor que se cumpre, /sem pergunta. /Onda que se esforça, /por exercício desinteressado. //Lua que envolve igualmente/os noivos abraçados/e os soldados já frios. /Também como este ar da noite:/sussurrante de silêncios, /cheio de nascimentos e pétalas. /Igual à pedra detida, /sustentando seu demorado destino. /E a nuvem, leve e bela, /vivendo de nunca chegar a ser.//À cigarra, queimando-se em música, /ao camelo que mastiga sua longa solidão,/ao pássaro que procura o fim do mundo, /ao boi que vai com inocência para a morte.//Sede assim qualquer coisa/serena, isenta, fiel. //Não como o resto dos homens. (Idem p. 63-64).
Da segunda à sétima estrofe, o eu lírico utiliza elementos da natureza para exemplificar maneiras de ser, citando elementos que não têm “sociedade”: plantas, nuvens, pedras. Já na sétima estrofe, a artista aproxima o destino dos homens aos dos animais, mas volta em seguida a reafirmar que o ser deve ser “[…] assim qualquer coisa/ serena, isenta, fiel./ não como o resto dos homens”. Pelo texto, podemos concluir que o eu poético não tem uma visão otimista sobre os homens, sugerindo que nenhum deles é leal e que o certo é buscar algo que preze a justiça e a verdade. Dessa forma, Cecília Meireles filosofa sobre o homem e a sociedade. E sugere um modo de ser diferente, sereno, isento e fiel.
Esse tom tranquilo, isento, devotado e, portanto, filosófico, por várias vezes é apresentado na poesia ceciliana. Um excelente exemplo é o verso de “Motivo”: “Não sou alegre nem sou triste”, em que a poeta demonstra isenção, apresentando-se como alguém que vive simplesmente, sem exaltações, apenas contempla a natureza, a vida e poetiza por meio do verbo.
O poema “Elegia a uma pequena borboleta” é uma composição de cunho triste, que revela o estado de espírito da poetisa: “Como chegavas do casulo, /– inacabada seda viva! –/tuas antenas – fios soltos/da trama de que eras tecidas, /e teus olhos, dois grãos da noite/de onde o teu mistério surgia, //como caíste sobre o mundo/inábil, na manhã tão clara, /sem mãe, sem guia, sem conselho, /e rolavas por uma escada/como papel, penugem, poeira, /com mais sonho e silêncio que asas, (…)– a confusão dos nossos olhos, /– o selvagem peso do gesto, /– cegueira – ignorância – remotos/instintos súbitos – violências/que o sonho e a graça prostram mortos.” (Idem p. 83-84).
A poeta, ao contemplar a borboleta, descreve-a como – “inacabada seda viva!” –numa alusão a pouca idade do filhote e numa referência à origem da seda (bicho da seda). Ao observar este animal tão puro, meigo e indefeso, ela se sente culpada por ter deixado suas duras mãos humanas apertarem o pobre e pequeno ser que teria “um bordado véu do dia”, ou seja, o desenho das asas da borboleta. Porém, a cegueira, a ignorância e a brutalidade do ser humano negaram-lhe o sonho. Consciente do “crime” cometido, o eu lírico deseja de se redimir garantindo uma nova vida à borboleta e pretendendo ser uma flor para servi-la. Na conclusão do poema, a poetisa chora os seus desacertos humanos. Mais uma vez Cecília Meireles se faz uma filósofa poetisa e deixa-nos a mensagem de que o homem deve contemplar amar a natureza, mas antes de tudo, deve respeitá-la.
Fusão entre o poeta e a natureza
Nem sempre, Cecília Meireles permanece contemplativa perante o mundo exterior, por vezes, integra-o ao mundo interior, numa identidade cujo resultado é a fusão entre o poeta e a natureza. Observe o poema “Canção Mínima”: “No Mistério do Sem-Fim, /equilibra-se um planeta. //E no planeta, um jardim;/e, no jardim, um canteiro;//no canteiro, uma violeta, /e, sobre a ela, o dia inteiro. //Entre o planeta e o Sem-Fim, /a asa de uma borboleta”.(Idem p. 40).
Este poema apresenta, inicialmente, um planeta personificado, como se fosse uma ginasta que se equilibra “No Mistério do Sem-Fim”. Este estranho lugar, no qual equilibra o planeta, denominado mistério do sem-fim, sugere duas interpretações: a primeira pode ser entendida como a posição geográfica do planeta Terra no sistema solar, dentro do universo infinito da astronomia; a segunda pode ser lida como sendo os mistérios que persistem neste mundo onde seres humanos e natureza buscam um convívio harmônico.
O verso de “Mistério do Sem-Fim”, graficamente, confere certo tom solene aos dois versos da primeira estrofe, através das iniciais maiúsculas. Este mesmo procedimento reaparece na última estrofe da “Canção Mínima”.
O segundo quarteto, que ocupa o centro do poema, apresenta uma série de elementos naturais numa gradação semelhante à aproximação de uma câmara de cinema. O espaço vai ficando cada vez mais próximo e mais reduzido: planeta – jardim – canteiro – violeta. A gradativa diminuição do espaço, na estrofe do meio, contrasta com o infinito sugerido na outras duas estrofes. No sexto verso, aparece um elemento indicador do tempo: o dia inteiro, isto é, permanentemente, sem cessar. O infinito espacial coincide com o infinito temporal, já que tanto o tempo como o espaço é “sem-fim”.
Na terceira estrofe, reaparece o infinito, espaço imaginário “entre o planeta e o Sem-Fim” lugar onde se equilibra “a asa de uma borboleta”. A asa da borboleta do verso final sugere múltipla significação: fragilidade, colorido, beleza, fertilidade (o pólen das flores transportados pelas borboletas); transformação (a passagem de lagarta à borboleta). Como a borboleta se equilibra entre o planeta e o Sem-Fim, é ela o elemento que liga o espaço graduado (planeta – jardim – canteiro – violeta) ao espaço (sem-fim). Ou seja, harmoniza-se o conjunto pela beleza, fragilidade, vida e morte, colorido e possibilidade de transformação que unem as partes do conjunto.
“Canção Mínima”propõe, poeticamente, um universo em equilíbrio onde o lugar que é o espaço conhecido do homem (estrofes do meio)“E no planeta, um jardim;/ e, no jardim, um canteiro;/ no canteiro, uma violeta, / e, sobre a ela, o dia inteiro” está cercado pelo mistério do infinito (primeira e última estrofe): “No Mistério do Sem-Fim/ equilibra-se um planeta”.
Como anuncia o título, a canção é mínima, é composta apenas por oito versos. Embora pequeno, o canto poético consegue transmitir uma ampla visão de mundo. Propõe um lugar no mundo onde os seres humanos vivem em meio a um universo cujos mistérios eles não dominam, mas cuja beleza e harmonia eles conseguem perceber. O poema é mínimo, mas traduz uma enorme verdade sobre os Mistérios do Sem-fim do Universo, do planeta, do homem e da natureza.
O poema “Canção”(Idem p. 15) é também marcado por esta simbiose entre o poeta e a natureza: “Pus o meu sonho num navio/e o navio em cima do mar;/– depois, abri o mar com as mãos, /para o meu sonho naufragar./Minhas mãos ainda estão molhadas/do azul das ondas entreabertas, /e a cor que escorre dos meus dedos/colore as areias desertas”. (p.15)
Nos primeiros versos, a poeta se declara uma consciente sonhadora. E, como tal, vai em busca do seu sonho, abre caminhos para que ele navegue pelos mares dos desejos, sem medo de um possível naufrágio.
A segunda estrofe apresenta poeticamente as marcas deste sonho “Minhas mãos ainda estão molhadas/ do azul das ondas entreabertas”. Porém, estas marcas não são amargas, nem salgadas, são coloridas e desenham outros sonhos, outros desejos, outros mundos poéticos. A natureza, neste caso, específico, é cúmplice, ajudante dessa poetisa sonhadora, pois serve como companhia e inspiração para as viagens poéticas desse ser humano que acredita no poder do sonho e do querer.
Ênfase à condição solitária do ser humano e aos obstáculos da vida
Cecília Meireles demonstrou em vários poemas a constatação da condição solitária do homem. Em poemas como “Lua adversa”(Idem p. 50), a poetisa expressa sua solidão no mundo: “Tenho fases, como a lua. /Fases de andar escondida, /fases de vir para a rua…/Perdição da minha vida!/Perdição da vida minha!/Tenho fases de ser tua,/tenho outras de ser sozinha.//Fases que vão e que vêm,/no secreto calendário/que um astrólogo arbitrário/inventou para meu uso.//E roda a melancolia/seu interminável fuso!//Não me encontro com ninguém/(tenho fases, como a lua…)/No dia de alguém ser meu/não é dia de eu ser sua…//E, quando chega esse dia,/o outro desapareceu…/”(Idem p. 50)
Em “Lua adversa”, o eu lírico se compara com a lua, porque, às vezes, fica escondida (no segundo verso); às vezes, vai para rua (terceiro verso); às vezes, encontra o amado (sexto verso) e, às vezes, fica sozinha (sétimo verso).
Segundo Chevalier & Gheerbrant: A Lua é símbolo dos ritmos biológicos: Astro que cresce, diminui e desaparece, cuja vida está submetida à lei universal do devir, do nascimento e da morte… a Lua conhece uma história patética, tal como a do homem… mas a sua morte nunca é definitiva… Este eterno retorno às formas iniciais, esta periodicidade sem fim faz com que a Lua seja por excelência o astro dos dois ritmos da vida… Ela controla todos os planos cósmicos regidos pela lei do devir cíclico: águas, chuva, vegetação, fertilidade… (Op. cit. Chevalier J. & Gheerbrand (1990) p. 561)
A poesia de Cecília Meireles traz o simbolimo e a poeticidade da lua por meio de metáforas, do tempo que passa fugidio e vivo, sempre correndo, em fases sucessivas, regulares e cíclicas, como o ciclo menstrual por exemplo, no qual a lua mantém uma relação direta. A palavra menstruação deriva do latim mensis (mês), que por sua vez é um termo relacionado a mene que significa “Lua” no grego antigo. Por isso, o eu lírico afirma: “Tenho fases, como a lua. /Fases de andar escondida, / fases de vir para a rua.”
Nesse sentido, o eu poético, assim como a Lua, se movimenta em fases e lunações, uma vez que o satélite natural da terra rege toda sua influência sobre ciclos femininos. O ciclo menstrual segue os direcionamentos da Lua e é concebido dentro da percepção do tempo ligada diretamente à natureza cíclica, contando o tempo em lunações. Cada lunação dura pouco menos de um mês (29 ou 30 dias) e inicia sempre no primeiro dia de Lua nova. Nela ocorrem as quatro fases da Lua: nova, crescente, cheia e minguante. Assim como as estações, cada lunação do ano carrega sua própria energia e delimita um espaço temporal: “Fases que vão e que vêm, / no secreto calendário/ que um astrólogo arbitrário/inventou para meu uso”.
Diante do exposto, uma das funções da lua é atuar o instrumento de medida universal e, de acordo com Chevalier & Gheerbrant: O mesmo simbolismo liga entre eles a Lua, as Águas, a chuva, a fecundidade das mulheres, a dos animais, a vegetação, o destino do homem depois da morte e as cerimónias de iniciação. As sínteses mentais tornadas possíveis pela revelação do ritmo lunar põem em correspondência e unificam realidades heterogéneas; as suas simetrias de estruturas ou as suas analogias de funcionamento não poderiam ter sido descobertas se o homem a lei de variação periódica do astro (Op. cit. Chevalier J. & Gheerbrand (1990) p. 561)
Por isso, o eu lírico exprime: “No dia de alguém ser meu/não é dia de eu ser sua… E, quando chega esse dia, /o outro desapareceu…”; e tem um “secreto calendário”, uma noção de tempo diferente das outras pessoas, um mundo só seu: sua solidão. Este discernimento da condição solitária do ser gera um estado de melancolia: “E roda a melancolia… não me encontro com ninguém”. Sozinha, ela encontra a magia da poesia que lhe conforta e faz seguir o seu caminho, suas luas e seu destino.
O poema “Se não houvesse montanhas”(Idem p. 151) também evidencia a consciência da condição solitária do ser humano. Expõe, ainda, os obstáculos da vida e a força do sonho. Tal força é o que leva todo poeta a superar todas as adversidades. Observe o poema: “Se não houvesse paredes! /Se o sonho tecesse malhas/e se os braços colhessem redes! /Se a noite e o dia passassem/como nuvens, sem cadeias, /e os instantes da memória/fossem vento nas areias! //Se não houvesse saudade, /solidão nem despedida…/Se a vida inteira não fosse, /além de breve, perdida! //Eu tinha um cavalo de asas, /que morreu sem ter pascigo. /E em labirintos se movem /os fantasmas que persigo.” (p. 151)
A primeira estrofe inicia com o triste reconhecimento dos obstáculos contínuos que a vida oferece. Tais empecilhos são conotados pelos substantivos “montanhas e paredes”, seguidos de “malhas e redes”. Esta constatação da realidade conduz o eu lírico para um forte desejo de buscar a fantasia, usufruir da imaginação e da liberdade. Este desejo está figurado através dos versos “Eu tinha um cavalo de asas”. Porém, o eu poético não foge da evidência de que a existência tem limites, a vida é efêmera e às vezes inútil. Os versos apresentam lamentos que emitem uma exclamação piegas omitida (Ah!), expressando objetivamente o desencanto com a inutilidade da existência: “Se não houvesse saudade, / solidão nem despedida…/ Se a vida inteira não fosse, além de breve, perdida”!
O cavalo simboliza o sentimento de se estar vivo, de ser carregado na vida e na morte. Sua imagem também se encontra associada à da árvore dos mortos, pois ele é um animal que a alma utiliza para ser cavalgada para o outro mundo.
Essa imagem do cavalo como corcel, aparece em várias mitologias: na nórdica, por exemplo, a mãe do grande Odin, era um “Corcel Assustador”, e Deméter, na mitologia grega, a deusa da colheita e da agricultura e das estações do ano (filha de Cronos e Reia) para fugir das perseguições de Posseidon, transformava-se em cavalo.
O cavalo, portanto, exprime a força, a energia e a disposição do homem, quando as imagens giram em torno de sacrifício, de passagem, da vida e da morte.
Na poesia de Cecília Meireles, o eu poético se encontra diante do inexorável destino: a morte, metaforizada pelo cavalo alado: “Eu tinha um cavalo de asas, / que morreu sem ter pascigo. / E em labirintos se movem os fantasmas que persigo”. /O cavalo alado é metáfora do sonho que se foi, de uma vida fugidia, veloz, que a morte levou e deixou apenas os fantasmas das lembranças.
A captação sensorial e a musicalidade.
Na expressão deste mundo recriado por meio de palavras, Cecília Meireles utiliza formas tradicionais ou o verso livre, em que predominam o descritivismo (graça a presença de elementos concretos), a captação sensorial e a musicalidade.
O apuro formal
Cecília Meireles é uma mestra na arte de versejar. Lapida com habilidade versos regulares, principalmente os de cinco (redondilha menor), os de seis, os de sete sílabas poéticas (redondilha maior) e os de oito sílabas; ou os versos livres, os que não obedecem às regras da métrica.
A respeito de seus versos Alfredo Bosi afirma que: Cecília Meireles foi escritora atenta à riqueza do léxico e dos ritmos portugueses, tendo sido talvez a poeta moderna que modulou com mais facilidade os metros breves, como se vê nas canções e no trabalhadíssimo Romanceiro da Inconfidência” (BOSI, 1980, p.516).
Cecília maneja com maestria versos longos, como em “Discursos” (Idem p. 12), “Conveniência”, (Idem p.14), “Aceitação” (Idem p. 17) e “Destino” (Idem p. 22); e, versos curtos como em Cançõese em Romanceiro da Inconfidência.
Manuel Bandeira na Apresentação da poesia brasileira, observou que: “O que chama atenção nos poemas de Cecília Meireles é a extraordinária arte com que estão realizados. Nos seus versos se verifica mais uma vez que nunca o esmero da técnica, entendida como informadora e não simples decoradora da substância, prejudicou a mensagem de um poeta. Sente-se que Cecília Meireles está sempre empenhada em atingir a perfeição, valendo-se para isso de todos os recursos tradicionais ou novos” (BANDEIRA, M. (1964) p. 167).
Os poemas de Cecília chamam a atenção do leitor para a em sensibilidade saber escrever o que o leitor queria ouvir sobre si mesmo, sobre o outro, sobre o mundo com suas cores, sons, sentidos, vida, morte, poesia, música, palavras e um labor técnico, perfeccionista, que encanta e torna seus versos memoráveis.
A captação sensorial
A poesia de Cecília Meireles é dotada de uma sensível percepção da realidade conduzida pelos cinco sentidos: audição, visão, tato, olfato e paladar. Combina sinestesicamente duas ou mais sensações, transfigurando o real e transformando o texto numa alquimia verbal.
No poema “Marcha” (Idem p. 25/26), Cecília Meireles faz associações sensoriais utilizando uma imagem visual combinada com o paladar, quando afirma: “Gosto da minha palavra/ Pelo sabor que lhe deste/ mesmo quando é linda, amarga/ como qualquer fruto agreste”.
A palavra poética é qualificada de linda (elemento visual), mas é ao mesmo tempo amarga (imagem gustativa) numa associação poética que leva a um conceito sensitivo da palavra. Tal verbalização conota uma presente beleza no poético misturado a um sabor de fel.
Outras associações sinestésicas podem ser encontradas no poema “Canção do caminho” (p. 36), que expressa: Minha canção vai comigo, /Vai doce. /Tão sereno é o seu compasso/que penso em ti, meu amigo. /– Se fosse, /em vez da canção, teu braço”. (Idem p. 36)
Quando o eu lírico expressa: “Minha canção” (elemento auditivo) “vai comigo/ vai doce” (elemento gustativo), temos uma interessante combinação sensorial sugerindo uma canção doce, meiga e lírica.
Opoema “Reinvenção” (Idem p. 48) apresenta a cor do sol (visual) passeando com sua mão dourada (tato) pelas águas, pelas folhas… formando através dessa associação sensitiva uma imagem belíssima. Oferece metáfora do ilusionismo da vida, completado pelos versos que afirmam: “Ah! tudo bolhas / que vem de fundas piscinas / de ilusionismo… – mais nada”. O texto embebido de imagens sensoriais transmite com maestria a magia da cor do sol sobre a natureza e a capacidade da luz de transmitir a ilusão da vida diante de um olhar espectador.
O poema “Cantarão os galos” (Idem p. 81) exprime o cantar dos grilos ao longe (audição), quebrando o frio (tato) do silêncio. Observe os versos: “Cantarão os galos, quando morrermos, /E uma brisa leve, de mãos delicadas/Tocará nas franjas, nas sedas mortuárias (…)E os grilos, ao longe, serrarão silêncios, /talos de cristal, frios, longos ermos, /e o enorme aroma das árvores.’’ (Idem p. 81).
O texto sugere que o canto dos grilos parece ter uma força, e até um calor que pode aquecer o frio do silêncio e dos ermos. Tal calor musical supera até o aroma das árvores. Desta forma, o poema exprime a força da canção através da sugestão sinestésica, que une o tato (do calor e frio) ao olfato (do aroma) à poderosa (audição) da música dos grilos.
Musicalidade
Cecília Meireles foi amante, estudiosa e cultivadora da música. A sua obra é um canto poético, uma profissão de fé ao lirismo auditivo, aos sons líricos que um verso pode exprimir.
A associação entre a música e a sua poesia está evidenciada nos títulos de vários poemas denominados de canção. E, no plural, Canções é o nome de uma de suas obras, além da combinação inusitada de outra obra denominada Vaga Música, uma vez que a autora combina o adjetivo “vaga” com o substantivo “música”. Tal combinação encaminha para uma ideia de indefinição “vaga”, mas também para a amplitude sonora. Por outro lado, o vocabulário “vaga” como substantivo – enquanto sinônimo de “onda” – sugerindo movimento, introduz o tema mar, frequente nessa obra e em muitas canções e outros poemas cecilianos.
Sons musicais e água são os veículos das viagens e dos sonhos da poetisa e de seu profundo senso de solidão. Dessa forma, seus versos têm recorte nítido musicalidade, combinados com flagrantes da vida, que são quase sempre, associações entre estados de espírito e formas exteriores, que lhe servem de contraponto e de símbolo. Raras vezes a poetisa chega ao hermético, mas insiste na presença da música.
Observe, por exemplo, a sugestiva “Canção” (Idem p. 18): “No desequilíbrio dos mares, /as proas giraram sozinhas…/Numa das naves que afundaram/é que tu certamente vinhas.//Eu te esperei todos os séculos,/Sem desespero e sem desgosto,/e morri de infinitas mortes/guardando sempre o mesmo rosto.//Quando as ondas te carregaram, /meus olhos, entre águas e areias,/cegaram como os das estátuas,/a tudo quanto existe alheias./” (Idem p. 18).
Cecília Meireles transporta para os versos a confissão de um amor náufrago e o estigma da vida selada pelos contrastes entre o efêmero e o eterno, entre o sonho e a realidade, a espera e o desencontro.
A autora metaforiza tal constatação através de procedimentos poéticos, alterando as aliterações (repetição de sons consonantais) nasais – mares, sozinhas, afundaram, vinhas, morri, infinitas mortes, guardando sempre o mesmo rosto, ondas te carregaram – simbolizando tristeza e desencanto, com assonâncias (repetição de sons vocálicos) indicando alegria e esperança.
Os verbos que não são poucos estão no passado e no gerúndio (giraram, afundaram, esperei, morri, guardando, carregaram, cegaram), representando a transitoriedade de tempo e reforçando o dinamismo da musicalidade do poema.
Esse poema “Canção” é apenas o exemplo de um conjunto de liras que cantam o mar, a água, a vida, a existência desta mulher poeta que, sabiamente, uniu as palavras à música num casamento primoroso. Deste conúbio nasce o poético de Cecília Meireles.
ENTRE O EFÊMERO E O ETERNO
Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu a 7 de novembro de 1901, no Rio de Janeiro. Órfã de pai e de mãe desde os três anos de idade, foi criada pela avó materna. A ausência dos pais repercutiu fundamentalmente no espírito e nos versos da poetisa. Daí nasce o signo do efêmero e do eterno de sua poética, da consciência de que tudo é transitório; por isso mesmo, o tempo é personagem central de sua obra: O tempo passa, é fugaz, é fugidio.
Em sua obra Olhinhos de Gato, a poetisa revela a leitura que faz de sua infância, indicando as marcas que são fundamentais em sua poesia, com relação à efemeridade e à eternidade; e, na obra em prosa, nos conceitos de infância e de criança.
Há uma mistura de temporalidades: uma autora adulta que conta suas memórias de infância, a partir de fragmentos de lembranças, que muitas vezes, em alguns pontos da narrativa, não está claro se os fatos foram contados a ela ou se tudo foi realmente foi testemunhado pela escritora, e é uma real memória. Funde-se o vivido e o ouvido, do real e o imaginário, o efêmero e o eterno; na construção da memória de um outro tempo: da infância, do passado distante, revivido por uma mulher experiente e que tem o poder da palavra.
Para melhor compreensão do tema transcrevemos um trecho de uma entrevista da autora para a revista Manchete, outubro de 1953: “Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno que, para outros, constituem aprendizagem dolorosa e, por vezes, cheia de violência. Em toda a vida, nunca me espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é fundamento mesmo da minha personalidade” (MENEZES, 1953, p. 49).
Cecília Meireles transfigurou, através de seus versos, toda sua experiência com a morte e com a vida. A poetisa sentiu profundamente a presença de ambas; desta última, guardou na memória e na poesia tudo o que viu, ouviu e tocou.
A escritora, comentando sobre suas recordações da infância, afirmou que:
Recordo céus estrelados, tempestades, chuvas nas flores, frutas maduras, casas fechadas, estátuas, negros, aleijados, bichos, suínos, realejos, cores, tapetes… o mundo visto através de um prisma de lustre, o encontro com o eco, essa música matinal dos sabiás, lagartixas pelos muros, enterros, borboletas, o carnaval, retratos de álbum, o uivo dos cães, o cheiro doce de goiaba, todos os tipos populares, a pajem que me contava com a maior convicção histórias do Saci e da Mula-sem-cabeça (que ela conhecia pessoalmente); minha avó que me ensinava parlendas…
Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área da minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. (Op. cit. MENEZES, 1953, p. 49).
Em uma crônica escrita para o jornal Diário de Notícias, no qual a poetisa tinha uma “Página de Educação” diária, ela menciona como a infância teve um papel essencial para sua história:
Nós somos a saudade da nossa infância. Vivemos dela, alimentamo-nos do seu mistério e da sua distância. Creio que são eles, unicamente, que nos sustentam a vida, com a essência da sua esperança. […] As coisas que nos impressionaram vivamente quando ainda não podíamos definir os motivos da nossa surpresa e da nossa admiração, quando nem sabíamos distinguir nitidamente essa admiração e essa surpresa, deitaram raízes obstinadas nas mais profundas regiões subjetivas; depois, foram sendo elaboradas lentamente, e vieram à tona em dias inesperados, afluindo, muitas vezes, em fragmentos – porque há sempre mãos impiedosas, concretas ou abstratas pairando sobre os destinos humanos… Somos, assim, um outrora que se faz presente todos os dias, não porque o presente seja a sua forma desejada como definitiva, mas porque é a transição a que a natureza submete tudo quanto transborda para mais longe, no tempo, e o crivo em que é vertido o passado que se faz futuro. (MEIRELES,20 dez. 1930).
A poeta deixa evidenciado que as vivências da infância ficaram enraizadas e determinaram seu futuro. A infância foi uma época mágica em sua vida, por meio da educação que recebeu da avó materna, Jacinta, e da ama Pedrina.
Cecilia vivia num universo povoado de histórias fantásticas, de músicas e sensações. Ela afiança:
Se há uma pessoa que possa, a qualquer momento, arrancar de sua infância uma recordação maravilhosa, essa pessoa sou eu. Já principiei a narrativa dessa infância num pequeno livro de memórias, aparecido numa revista portuguesa, com o título “Olhinhos de Gato”. Mas há muito para contar. Tudo quanto, naquele tempo, vi, ouvi, toquei, senti – perdura em mim com uma intensidade poética inextinguível. Não saberia dizer quais foram as minhas impressões maiores. Seria a que recebi dos adultos tão variados em suas ocupações e em seus aspectos? Das outras crianças? Dos objetos? Do ambiente? Da natureza?
[…]
Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde foi nessa área que os livros se abriram, e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano. (MENEZES, 1953, p. 49).
Da meninice fantástica e dos momentos tristes, povoados pelas perdas de entes queridos, Cecilia Meireles explana sobre os aspectos sinestésicos, que inspiraram sua poesia, que se tornaram intensamente poéticos, “recordações maravilhosas”, fáceis de serem recordadas, revividas na memória.
A poetisa revela ainda, que não conseguiu avaliar quais as maiores influências que teve: se o sentir o mundo por meio das pessoas, coisas ou da sinestesia do mundo, das horas e do tempo.
Sobre suas leituras e seu amor pelos livros: “Muita gente hoje me pergunta quais foram as minhas primeiras leituras. Na verdade, desde que aprendi a ler – e nisso fui um pouco precoce – li tudo que estava ao alcance da minha mão. Lembro-me que os livros ilustrados me interessavam muito. Além da leitura, os livros também já me interessavam como “objetos”, pelo seu aspecto gráfico, sua encadernação, beiras douradas etc. Gostava muito desse papel que se chamava “marmoreado” e que servia para forrar as encadernações por dentro e, também, por fora” (MEIRELES, 1993, p. 82).
E acrescentou: “Sempre gostei muito de livros e, além dos livros escolares, li os de histórias infantis, e os de adultos: mas estes não me pareciam tão interessantes, a não ser, talvez, “Os Três Mosqueteiros”, numa edição monumental, muito ilustrada, que fora de meu avô. Aquilo era uma história que não acabava nunca; e acho que esse era o seu principal encanto para mim. Descobri o Dicionário, uma das invenções mais simples e mais formidáveis e, também, achei que era um livro maravilhoso, por muitas razões” (MEIRELES, 1993, p.83).
Toda a vivência da escritora foi transformada numa intensidade poética inextinguível. Sua vida está desenhada em versos como “Desenho”: “Fui morena e magrinha como qualquer polinésia, /e comia mamão, mirava a flor da goiaba. /E as lagartixas me espiavam, entre os tijolos e as trepadeiras. (…)O eco, burlão, de pedra em pedra ia saltando, /entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas. (…)Como a chuva caía das grossas nuvens, perfumadas! (…)O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos/fecharam os olhos, quando queriam caçar o tempo. (…)e os grandes cães ladravam como nas noites do Império. (…)E minha avó cantava e cosia. Cantava/canções de mar e de arvoredo, em língua antiga. /E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos/e palavras de amor em minha roupa escritas. //Minha vida começa num vergel colorido, /por onde as noites eram só de luar e estrelas.” (Idem p. 76-77)
A menina-moça, Cecília Meireles, crescia contemplando a natureza, as coisas, a vida e aprendendo a amar o saber, cada vez mais. A leitura do mundo e dos livros foi intensificada e refletida na vocação para o magistério.
Em 1917, forma-se na Escola Normal do Rio, dedicando-se ao magistério primário. Paralelamente, Cecília estudava línguas e música. Sua estreia na Literatura foi em 1919, com o livro Espectros. A partir da década de 30 dedica-se ao ensino da Literatura Brasileira em várias Universidades do Brasil e do exterior. Como jornalista, colaborou em quase todos os jornais e revistas do Rio de Janeiro.
A Academia Brasileira de Letras, em 1965, concedeu à Cecília Meireles, post-mortem, o prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra: POESIA –Espectros,1919;Nunca Mais… e Poema dos Poemas, 1923; Baladas para El-Rei, 1925; Viagem,1939; Vaga Música,1942; Mar Absoluto e Outros Poemas,1945; Retrato Natural, 1949; Amor em Leonoreta,1951; Doze Noturnos de Holandae O Aeronauta,1952; Romanceiro da Inconfidência,1953; Pequeno Oratório de Santa Clara,1955; Pistóia, Cemitério Brasileiro,1955; Canções,1956; Romance de Santa Cecília, 1957; A Rosa,1957; Obra Poética, 1958; Metal Rosicler,1960; Poemas Escritos na Índia,1962; Solombra,1963; Ou Isto ou Aquilo,1964;Crônicas Trovada da Cidade de Sam Sebastiam do Rio de Janeiro no Quarto Cenário de Sua Fundação pelo Capitão-Mor Estácio de Sá,1965;Poemas Italianos,1968; Ou Isto ou Aquiloe Poemas Inéditos,1969; Cânticos, poesias inéditas,1981. PROSA:Giroflê, Giroflá,1956 e1981, respectivamente; Quadrante 1 e Quadrante 2,1962 e 1963, respectivamente; Escolha o Seu Sonho,1964; Vozes da Cidade,1965; Inéditos,1968; O Que se Diz e o Que se Entende, 1980; Olhinhos de Gato,1980. ANTOLOGIAS:Antologia Poética, 1963; Seleta em Prosa e Verso,1973; Cecília Meireles,1973; Flor de Poemas,1972.
Cecília Meireles casou-se, em 1921 com o pintor Fernando Correia Dias, com o qual teve três filhas: Maria Elvira, Maria Matilde e Maria Fernanda. Viúva, casou-se em 1940 com o Prof. Heitor Grillo. Deixou cinco netos: Ricardo, Alexandre, Fernanda Maria, Maria de Fátima e Luiz Heitor Fernando. Morreu a 9 de novembro de 1964, no Rio de Janeiro, mas deixou sua canção e como a própria escritora afirmou: “Um poeta é sempre irmão do vento e da água:/ deixa seu ritmo por onde passa”. Cecília deixou seu ritmo, seu canto, sua obra poética vastíssima, eterna e encantadora.
A MULHER TAMBÉM TEM O QUE DIZER
Numa época em que a mulher era condenada a não expressar a sua essência, a sua força e gana do ser mulher – sensível e poético, Cecília soube mostrar seu universo lírico e alcançou sua meta que era “Acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação – mas por uma contemplação poética afetuosa e participante” (MEIRELES, 1993, p. 80).
Cecília Meireles foi uma mulher que seguiu sua marcha poética sem ter medo de ser poeta, nem de viver, nem de morrer. Foi uma amante da alquimia verbal e de forma especial amou o seu trabalho, assim como amou a vida. Seu poema “Marcha” (Idem p. 25) traz o seguinte depoimento: “Gosto da minha palavra/ pelo sabor que lhe deste:/ mesmo quando é linda, amarga/ como qualquer fruto agreste. / Mesmo assim amarga, é tudo/ que tenho, entre o sol e o vento:/ meu vestido, minha música, / meu sonho e meu alimento.”
Diante do exposto, a poesia para Cecília Meireles é tudo. Por meio de seus versos, a poetisa construiu um mundo de sonhos e de realidades. Sua gama temática é extensa; foram mais de quarenta anos de obstinada atividade criadora, em que o exercício do verso se fez obrigação cotidiana.
De seu empenho resultou a composição de um painel, seguramente sem similar na lira de Língua Portuguesa, em que a poetisa representou a vida em sua plena manifestação: o universo e as gentes; a flor e o pássaro; os seres ínfimos e as estações do mundo; a pedra, a cor, o mar, a criança e a carga de sentimentos; impressões, vivências e juízos que informam a mente e a natureza humanas. Inventário da vida de uma doce mulher, uma obra riquíssima, grandiosa – reflexo do ser de uma mulher especial – Cecília Benevides Carvalho Menezes – A mulher-poeta que soube contemplar as coisas do mundo e, filosoficamente, reinventar a vida e marcar sua existência e sua poesia na travessia entre o efêmero e o eterno.
Seu legado à literatura tem realmente um “sangue eterno e a asa ritmada”. Sua poesia a cada dia que passa tem o poder de encantar as almas amantes da alquimia poética. Seus poemas dizem o indizível.
Por fim, Cecília Meireles começou sua carreira poética sob o signo do Simbolismo, com fortes e nítidas influências de Cruz e Sousa e do misticíssimo Alphonsus Guimaraens.
Mesmo após sua adesão ao Modernismo, a poetisa nunca se desvencilhou das marcas simbolistas, especialmente manifestadas pela temática e pela ambiência lírica, em que se movimenta e que é geralmente afastada do imediato, do real contíguo, que sua poesia exige e que está marcada pelas alusões e pelas sugestões, pelas imagens vagas que, ora se evolam, ora se afundam em mar indefinido.
Junto às marcas simbolistas, no plano da linguagem e temática, alinham-se preferências por símbolos de origem medieval (como a rosa por exemplo) e por tópicos extraídos da cultura portuguesa, tanto de natureza popular, quanto a de raízes cultas. Assim, a habilidade com que trabalha os versos breves (redondilha maior e a menor) dá a muitos de seus poemas um caráter de comunicação fácil que certamente não teriam em vista das imagens que os integram.
Seus versos têm recorte nítido, musicalidade e, quase sempre, trabalham associações entre estados de espírito e formas exteriores que lhes servem de contraponto e símbolo.
A poesia ceciliana caracteriza-se pelo lirismo, pela delicadeza com que tematiza a passagem do tempo, a transitoriedade da vida, a precariedade das coisas e dos seres, a condição solitária do ser humano, a falta de sentido da existência e a consciência da imortalidade por meio do poético.
Cecília Meireles é dona de uma temática extensa, fruto de mais de quarenta anos de incessante trabalho criativo. Dentro desse universo poético, um tema ceciliano merece destaque: o nacionalismo do poema épico-lírico – Romanceiro da Inconfidência. Essa obra, feita a partir de fatos históricos, de tradições e lendas pesquisadas pela autora, resgata liricamente a Inconfidência Mineira, anseios libertários, os amores de Tomás Antônio Gonzaga e de sua Marília e a vida na Vila Rica, do século XVIII. Todos esses fatos são contados através de uma narrativa rimada, denominada Romances.
Cecília Meireles penetrou no universo caótico e indecifrável das palavras, onde tudo são silêncio e mistério. Desse mundo, com maestria, a artista retirou à música, as sensações, a plurissignificação verbal, e mostrou a todos a beleza da linguagem poética. Sua poesia expressa vida, morte, sonho, liberdade, amor e o poder que possui seus versos de “sangue eterno e asa ritmada”, de transformar o efêmero e o eterno.
Maria de Fátima Gonçalves Lima
Doutora em Teoria Literária pela UNESP – São José do Rio Preto; Pós Doutora pela PUC Rio de Janeiro; Pós Doutora pela PUC São Paulo. Coordenadora do PPGLETRAS – Programa– Mestrado e Dourado em Letras PUC/Goiás, autora de mais de 50 obras – crítica literária, ensaísta e escritora de obras infantis. Titular da Academia Goiana de Letras (AGL), Cadeira nº 5 (fatimma@terra.com.br).
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