Horácio ensinou que na poesia a beleza deve abranger o todo e não apenas partes
Marina Teixeira da Silva Canedo
Especial para o Jornal Opção
“O homem bom e prudente repreende versos sem arte”/ “Só o saber é fonte e princípio da escrita correta”. — Horácio
Apesar do enorme respeito e admiração que devotava a Homero, considerado o grande luminar dos gregos, Platão não recomendava o ensino de suas obras, principalmente aos jovens. A contradição intrínseca nesse posicionamento deve-se ao fato de Platão, como filósofo, não aceitar o disfarce da realidade pela fantasia da Poesia.
Para Platão, a Poesia, como a Pintura, não representava a realidade, mas eram, ambas, meras representações distorcidas do pensamento do artista.
Os atos oriundos da maldade, da inveja e da ira dos deuses olímpicos, amplamente descritos por Homero na “Ilíada” e na “Odisseia” e também nos Mitos, eram inconcebíveis a Platão e tidos como um inaceitável desvio da ação dos deuses, pois esses são essencialmente bons.
Em “A República” (Ciranda Cultural, 640 páginas) o pensamento platônico consolida-se na crítica à Poiesis, tida como desvio da procura da verdade. Assim, também Aristóteles, na “Poética”, afirma que “Homero ensinou os outros a falar mentiras do jeito certo “. O “jeito certo” é a pedra de toque da Poesia: refere-se à beleza das palavras, dispostas em versos metrificados e cantados na cadência das rimas, importando-se nem sempre com a verdade, mas sempre com a beleza e a harmonia.
O ethos da sociedade grega estava erigido sobre a cultura mítica e coube aos filósofos gregos a suprema tarefa de elevar o pensamento aos domínios da Lógica, da Ética e da Metafísica. Perguntado por Glauco sobre quem são os verdadeiros filósofos, Platão responde que “são aqueles que amam a visão da verdade”.
Aparentemente opostos, a Grécia foi o berço da Ficção e da Razão. Coube a esta última, por meio da Filosofia nascente, desvendar os caminhos do conhecimento, que se diversificaram através dos séculos, culminando na eclosão da ciência.
Mas, mesmo debaixo da artilharia filosófica, o corpus da Poesia resistiu e floresceu, alastrou-se com a avidez do fogo ao envolver seu objeto de consumo. A necessidade de atividades lúdicas é parte importante para o bom funcionamento da espécie humana. À privação pelos sentidos, das artes, como a Música e a Poesia, viver seria atravessar um longo, árido e cansativo deserto. Melhor seria entregar-se aos braços repousantes da morte, diriam muitos. Por estes justos motivos, os poetas sempre foram os arautos de seu povo e a Poesia consolidou-se através de um conjunto de regras, sujeitas à beleza do ofício.
Para tanto, Quinto Horácio Flaco (65 a. C-8 a. C) compôs um poema, a “Arte Poética” (Autêntica, edição bilíngue, 2020). É um poema sobre como escrever poemas, e é, até hoje, o mais famoso manual do gênero. É, na verdade, uma carta de Horácio a seus amigos, os irmãos Pisões, escrita em torno do ano 14 ou 13 a.C. em hexâmetros datílicos. Foi habilmente e cuidadosamente traduzido por Guilherme Gontijo Flores, poeta e professor de Grego Antigo e Latim.
De posse desse conhecimento, constatamos que o ofício poético não era dado a qualquer um. Para exercê-lo com mestria e ser chamado de poeta era necessário dominar essa arte como se fora uma ciência. Seus preceitos englobavam as técnicas relativas à escrita, como a escansão correta dos versos, entre outras, e o conteúdo da mensagem, do ponto de vista do emissor e do receptor. Dentre as sensatas regras, eis algumas:
— Dever do poeta é obedecer a relação entre gênero, metro e tema.
— A organização da obra garante a lucidez.
— A beleza deve abranger o todo e não apenas partes.
— O poema tem de ser belo e ter a capacidade de seduzir e manter atento o público/ leitor.
— Neologismos e arcaísmos são bem-vindos, desde que bem utilizados.
— O talento natural precisa ser aperfeiçoado pela prática da arte.
Dentre as muitas recomendações, está a de não se deixar seduzir por bajuladores, que muito elogiam com interesses escusos. A verborragia deve ser evitada, para que o poeta não sobrecarregue os ouvidos e a paciência do público/leitor, já que se trata também de orientações para o drama.
Por todo o poema, seus preceitos são sustentados pelos exemplos de mestres da poesia, desde Homero a Virgilio.
Horácio considera com rigidez a questão da métrica, concordando apenas com um mínimo de liberdade facilitadora. Para ele, a perfeição poética não pode prescindir desta regra. A expressão “sem pé nem cabeça” surge na obra de Horácio quando ele propugna pela unidade na poesia, que precisa ser coesa em todas as suas partes. Combate também o copismo, exigindo boa dose de originalidade.
Horácio termina suas recomendações abominando o delírio do mau poeta.
É de se observar que os bardos que se engajam na poética do vate-mor, Horácio, estão fadados a um maior reconhecimento, tendo suas obras uma aproximação maior da perfeição. Essa conclusão é válida para os nossos dias, tempos de muita liberdade no ofício poético.
Mas, se as regras de Horácio permanecem vivas por mais de dois mil anos, é sinal de que existe sabedoria nelas, e de que, por mais esse motivo, Filosofia e Poesia devem ser consideradas formas de expressão irmãs, e não antagonistas.
Marina Teixeira da Silva Canedo, poeta e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.
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