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A Noite das Mulheres Cantoras, de Lídia Jorge, é um romance analítico e monofônico

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Marina Teixeira da Silva Canedo

Especial para o Jornal Opção

Na literatura portuguesa contemporânea um nome se destaca — o de Lídia Jorge, de 78 anos — e com muito mérito. É detentora de vários prêmios, não só em Portugal mas também na Alemanha, e Prêmio Jean Monet de Literatura Europeia-Escritor Europeu do Ano. A escritora teve seu nome lembrado na Universidade Federal de Goiás (UFG), que instituiu a Cátedra Lídia Jorge em 2024. Poetisa (“O Livro das Tréguas”), contista e principalmente romancista, ela tem em “A Noite das Mulheres Cantoras” (Leya, 317 páginas) um de seus livros mais celebrados pelos leitores e pela crítica. Recentemente, lançou o romance “Misericórdia” (Autêntica, 384 páginas).

Lídia Jorge está entre as mais importantes escritoras de fala lusófona, e destaca-se no cenário português ao lado de Sophia de Mello Brayner Andresen (1919-2004), Florbela Espanca (1894-1930) e da maior poetisa portuguesa da atualidade, Adília Lopes.

“A Noite das Mulheres Cantoras” é um romance ambientado em Lisboa, em um período de vinte e um anos, de 1988 a 2009. Divide-se em três tempos: presente, passado e outra vez no presente. Escrito em estilo bem pessoal e intimista, a autora confere à obra seu olhar poético e peculiar, criando uma atmosfera em que a poesia assume relevância na adjetivação da paisagem e dos ambientes e nas metáforas constantemente empregadas pela protagonista. Tudo em linguagem enxuta, atual e personalista, imbuída de relevante rigor estético.

Lídia Jorge: uma das mais importantes escritoras portuguesas | Foto: Reprodução

A narradora é a protagonista da história, Solange de Matos. Em um jogo de tempo/espaço, o romance inicia-se pelo fim da história e a partir desse momento ápice, que é a Noite Perfeita, apresentação musical e teatral comandada por Gisela Batista, Solange de Matos vai, aos poucos, revelando ao leitor os acontecimentos que se deram em vinte e um anos passados. A linha do tempo não é contínua, pelo contrário, a narrativa dá-se em um jogo de vai-e-vem continuado no qual os fatos passados vão-se entremeando no presente da protagonista e satisfazendo seu fluxo de reminiscências, necessárias à elucidação dos acontecimentos pretéritos.

Solange de Matos e a revelação dos segredos

Para o leitor, que ainda não está familiarizado com o enredo, o início é uma grande incógnita. É uma charada apresentada e que, aos poucos, vai sendo desvendada por meio da revelação das memórias represadas da persona de Solange de Matos.        

É um romance no qual as personagens principais são as cinco cantoras e um coreógrafo. Cinco cantoras reúnem-se e iniciam os ensaios para elaborarem um ambicioso espetáculo e a gravação de um long-playing, contando com a colaboração de instrumentistas, figurinista, coreógrafo e outros profissionais. Todos são comandados pela chefe da trupe, Gisela Batista, de temperamento forte e autoritário. O projeto é financiado pelo misterioso e milionário senhor Simon, acreditado como sendo o pai de Gisela. Mas seria mesmo o pai?

A interrelação entre as personagens vai gerando subsídios para o enredo principal, que se concentra especialmente entre Solange e a “maestrina” Gisela Batista, a dona da garagem onde ocorrem os ensaios e onde se passa a maior parte da trama. Um piano de cauda e um enorme espelho compõem o ambiente; são elementos importantes, que permitem a melhor consecução dos ensaios das cantoras-personagens e complementam um ambiente já por si só muito básico e sem mais atributos, sendo uma garagem

Um romance se inicia entre Solange de Matos e o coreógrafo famoso, João de Lucena. A ordem de Gisela era para que nenhuma das cantoras tivessem relacionamentos amorosos. No entanto, por algum motivo só revelado no final, ela finge desconhecer a relação.

A autora, Lídia Jorge, manuseia o enredo com mestria, deixando para o final a revelação de segredos que surpreendem o leitor desavisado.

“A Noite das Mulheres Cantoras” é, tipicamente, um romance contemporâneo e pode ser descrito como analítico e monofônico. A protagonista detém o poder da fala e seu tempo psicológico dá direcionamento ao enredo.

No cotejamento com grandes obras como “Madame Bovary”, “Os Irmãos Karamázov”, “Anna Kariênina”, “Os Miseráveis”, percebe-se que estes romances detêm uma pluralidade de personagens e maior complexidade na elaboração dos enredos e dos componentes psicológicos do que nos apresenta a presente obra. São, todos eles, pertencentes à Escola Realista da literatura e consagrados como clássicos da literatura mundial. Trata-se do suprassumo da arte literária, representantes de uma época de ouro do romance que foi o século XIX.

“A Noite…” nos revela um romance de menores proporções e menos ambições, que faz do dia a dia das personagens seu roteiro. Sua temática gira em torno dos projetos musicais de Gisela Batista, uma mulher obcecada, nos quais inclui a jovem letrista de 19 anos, a narradora. Solange de Matos, que ao narrar já tinha 40 anos, imbui-se do desejo de sucesso através das letras de música que escrevia, lyrics, de sua voz e de sua atuação nos palcos. A história se passa em torno desse grupo musical e dos relacionamentos mútuos, debaixo da ação manipuladora de Gisela Batista.

Sendo um romance contemporâneo, as mulheres nele envolvidas são mulheres independentes e que projetam seu futuro sem a obrigatoriedade de estarem casadas e com filhos. “A Noite…” reflete a sociedade atual, com seus valores, critérios e modos de vida, que depende sobretudo das capacidades individuais e cujas protagonistas não sofrem com o peso das discriminações sexuais, sociais e econômicas, pelo menos não tanto quanto as heroínas dos romances do século XIX. 

Marina Teixeira da Silva Canedo é cronista, poeta e crítica literária. É colaboradora do Jornal Opção.

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