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Cantagalo, livro-alegoria do Brasil de 1900, é premiado em Portugal. A autora é mineira

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Ivan Mendonça

Especial para o Jornal Opção

O que há de novo no mercado literário de Língua Portuguesa? A resposta pode estar nas 271 páginas do livro “Cantagalo” (Editora Guerra & Paz), da jornalista mineira Fernanda Teixeira Ribeiro, 40 anos, lançado este ano na Feira do Livro de Lisboa, que contou com quase 1 milhão de visitantes no período entre 29 de maio e 6 de junho. O livro é uma alegoria à organização social do Brasil e surpreende pela riqueza e o conteúdo de seus personagens, todos com nomes escolhidos aleatoriamente, mas bastante comuns nos idos de 1900.

Ambientado na região oeste de Minas Gerais, o romance se desenvolve em um cenário parecido com as veredas e os sertões de Guimarães Rosa. Mas a realidade nua e crua na abordagem de tabus e preconceitos lembra a sociedade urbana descrita por Machado de Assis. Na trama de “Cantagalo”, guardada a devida distância geográfica, o vale-tudo para a manutenção do poder familiar em um latifúndio de café, nada fica a dever aos meios antiéticos narrados na primeira pessoa por Graciliano Ramos, no romance “São Bernardo”, para compor o autoritário fazendeiro alagoano Paulo Honório.

Fernanda Teixeira Ribeiro: publicada e premiada em Portugal | Foto: Reprodução

Nascida em Uberaba e diplomada em Comunicação Social pela Universidade de São Paulo (USP), Fernanda Teixeira Ribeiro escreve fácil e soube usar e abusar de seus conhecimentos como doutora em Ciências do Desenvolvimento Humano pela Universidade Mackenzie para se esmerar no texto de “Cantagalo”. Salta aos olhos seu capricho com as normas técnicas de literatura, incluindo recursos de flashback, bagagem que obteve em cursos direcionados a escritores. Aliás, fazendo jus também à especialização em Neurociência e Psicologia Aplicada, a prosadora surpreende pelos diálogos fortes e envolventes, com questionamentos sociais, familiares e psíquicos.

Graças a tudo isso, com destaque para a capacidade em retratar e desmistificar a moral religiosa daquela época, sobretudo o que se passa na clausura de seminários e conventos, Fernanda Teixeira Ribeiro se tornou nada menos do que a primeira mulher a conquistar a nona edição do Prêmio Revelação Literária, promovido pela União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA), em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa.

O concurso existe desde 2016 e a comissão julgadora foi composta por críticos de literatura, acadêmicos e escritores do Brasil, Portugal, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Guiné-Bissau, Angola, Macau e Timor-Leste. Vale lembrar que Fernanda Teixeira Ribeiro superou 168 concorrentes de 15 países, a maioria de sexo masculino. No ato de inscrição, detalhe importante, só é conhecido o nome da obra, daí a surpresa pelo fato de uma mulher ter sido autora de “Cantagalo”, escrito em uma linguagem bastante expressiva aos olhos conservadores.

Além da publicação do livro pela editora portuguesa Guerra & Paz, Fernanda Teixeira Ribeiro faturou também o prêmio de 3 mil euros, algo em torno de 18 mil reais. Sem contar o convite para participar do Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, a ser realizado na cidade de Praia, em Cabo Verde, a partir de 5 de setembro. Na edição deste ano, haverá homenagem especial aos 500 anos de nascimento de Luís Vaz de Camões, autor de “Os Lusíadas”.

No Brasil, o lançamento de “Cantagalo” só acontecerá no primeiro semestre de 2025. A publicação vai ficar a cargo da Editora Todavia, detentora dos direitos do livro “Sobre Ossos dos Mortos”, de Olga Tokarczuk, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2018.

Alegoria das relações sociais no Brasil

Presenteado pela própria Fernanda Teixeira com a versão portuguesa de “Cantagalo”, lançada em maio na Feira do Livro em Lisboa, dediquei-me à leitura com os olhos voltados exclusivamente para o fato de o romance ter se desenvolvido na região do Alto Paranaíba, onde nasci e morei até os 19 anos. No entanto, dada à incomum narrativa que encontrei dos desarranjos sociais, acabei sucumbindo à necessidade de uma segunda leitura até como aprendizado do período em que a cultura negra era subjugada diante da população de maioria esbranquiçada.

Texto lido e relido, impecável, posso garantir que seu conteúdo é extremamente revelador na abordagem das crenças religiosas, notadamente de origem africana, sem contar a influência do poder dominante nas relações com a Igreja Católica. Seus personagens são bem abrangentes, a começar pela postura nada impoluta de Dona Praxedes, herdeira do baronato do café, que não mede consequência para se manter no comando do poder familiar. Engravidada do próprio pai, ela se torna moeda de troca em um casamento arranjado com um primo rico, filho de escravizada, porém batizado com o pomposo sobrenome Lima.

Em “Cantagalo”, Praxedes divide o protagonismo com suas três filhas, subjugando-as a situações de meros objetos, além de castrar e renegar mínima desobediência. Tudo como aprendeu com o pai, notadamente no relacionamento com a primogênita Leopoldina, fruto da relação incestuosa. No desenvolvimento da história, a autora aproveita justamente a desenvoltura da personagem para mostrar os bastidores dos colégios de freiras e das noites maldormidas os becos de Ouro Preto, velha capital das minas, que são gerais.

A segunda filha, batizada de Agripina e desdenhada como “encardida”, teve final feliz ao ser pedida em casamento por um doutor médico, filho do barão da Fazenda Ponte Alta. Já Antônia Honória, de bochechas rosas, foi oferecida ao tio seminarista Modesto Lima, seu irmão temporão, incluindo a promessa de usufruto do título de barão. Justo ela, a vermelhinha Tonica, homenageada com o nome do avô, que todo mundo achava muito parecida com o italiano Galego, casca de ferida contratado para entalhar o brasão da Família Lima na porta do casarão. Par constante de Praxedes nos embalos de sábado à noite, Galego simplesmente desapareceu do mapa após o nascimento da menina cor-de-rosa. 

Como exemplo do texto expressivo de Fernanda Teixeira Ribeiro, vale reproduzir o diálogo de convencimento de Praxedes para casar o irmão mais novo, notório bon vivant, com sua filha de cabelos loiros-afogueados: “Por que se espanta? Meu marido era meu primo, mamãe e papai também eram primos, você se casa com uma Lima, assim que é, se quer ser barão. Antes de tudo, o nome…é um acordo dos melhores…quem ganha é o Cantagalo. Sempre Cantagalo. Se quer ser barão, passe o Cantagalo na frente, o cafezal antes de tudo, a família…garanto que você ainda me agradecerá por abrir seus olhos. Venha, beije minha mão…você está perdoado…”.

A propósito dos casamentos avunculares e consanguíneos, abordados com naturalidade no livro, não deixa de ser curioso o espaço dedicado à politização e reprodução artificial de pisum. Plantinha de ciclo curto, porém de diversas cores e características, pródiga em várias gerações em pouco tempo, ela foi usada em meados de 1800 nos experimentos de Gregor Mendel, considerado pai da genética, para avançar nos estudos sobre hereditariedade.

Enfim, se já não bastasse tanto simbolismo e misticismo na trajetória desta família inter-racial, Fernanda Teixeira transfere para o final do livro o desfecho misterioso para dois personagens-chaves da trama. A louca varrida Pulidóra, aliada do capeta e de risadas extravagantes, e a curandeira Iamiana das Flores, useira e vezeira de roupas coloridas, sempre enfeitada com pulseiras, tornozeleiras e balangandãs nos dois braços.

Mais do que isso só lendo o livro.

Ivan Mendonça é jornalista e autor do livro “O Espião do Morro”, lançado em 2019 pela Editora Kelps, sobre entrelinhas e mutações do jornalismo e do poder político em Goiás.

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