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A poesia do macabro em A Luz das Velas de Sebo, de Delermando Vieira

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Ademir Luiz

Toda literatura possui seu “homem de areia” à Hoffman, aquela figura intrigante e soturna que chega silenciosamente, trazendo narrativas surreais, oníricas, fantásticas, inacreditáveis. A Argentina possui Borges, a americana Poe, a França Maupassant, a Inglaterra Lord Byron, a Alemanha o próprio Hoffman. Na literatura feita em Goiás temos Delermando Vieira, nosso man in black versado em espanhol e francês, esse colecionador de prêmios que conseguiu a proeza de ser igualmente monstruoso na prosa e na poesia.

Henry James foi um prosador que se orgulhava de jamais ter publicado um verso. Ted Hughes era um poeta que eventualmente aventurou-se na prosa. Diferentemente, Jorge Luis Borges foi poeta e contista em igual medida, embora tenha sido reconhecido principalmente por suas narrativas curtas. O inverso cabe para o escritor Delermando Vieira, autor dos consagrados livros de poesia “A Sinfonia dos Peixes”, de 1982; “Como Pássaros Suspensos no Jardim do Tempo”, de 1984; “Os Labirintos do Novelo”, de 1997; “Lírio Imperfeito”, de 2000; e “Os Deuses Malditos”, de 2003

Considerado um dos artistas mais originais de sua geração, Delermando Vieira nasceu na cidade de Caldas Novas em 15 de fevereiro de 1950 e formou-se em Direito pela Universidade Federal de Goiás (Teles, 2011, p. 461).  Embora seja muito lembrado como poeta, dedicou-se de maneira sólida à construção de sua obra em prosa. Livros como as coletâneas de contos “A Dor de Amar Demônios”, vencedor do Prêmio Bolsa de Publicações Cora Coralina de 1996, “A Corda & o Abismo”, Prêmio Hugo de Carvalho Ramos de 1998, e “Gárgula”, de 2009, testemunham a consciência intelectual acerca da construção de suas narrativas (Teles, 2007, p. 142). 

Em “A Dor de Amar Demônios” temos o conto “O Chapéu”, muito significativo para o estabelecimento de sua estética e temática em prosa. Nota-se nesta narrativa uma nítida influência da mística borgiana, caracterizada pela presença de objetos miraculosos: o “Aleph”, “O Livro de Areia”, “O Disco Invisível”, entre outros. Todos eles, de algum modo, são Zahir.

Delermando Vieira, Valdivino Braz e Salomão Sousa: escritores | Foto: Facebook

Segundo Borges, “a crença no Zahir é islâmica e data, ao que parece, do século XVIII (…) chamava-o de ‘os seres ou coisas que têm a terrível virtude de ser inolvidáveis e cuja imagem acaba por enlouquecer as pessoas’” (2000). Em Buenos Aires dos anos de 1940, o Zahir era uma moeda de vinte centavos, mas “em Guzerat, em fins do século XVIII, um tigre foi Zahir”. No Brasil da década de 1990 deve ter sido um “chapéu de abas largas, vermelho arroxeado”, o legitimo protagonista do conto intitulado justamente de “O Chapéu”, de Delermando Vieira.   

O primeiro a ter contato com o chapéu/Zahir na narrativa foi um arquiteto chamado Luccio Borges. O nome Luccio é uma variação latina de Lux, Luz; justamente o que faltava ao escritor cego Jorge Luis Borges, arquiteto artístico de mundos inteiros, como no conto “Tlön, Uqbar, Orbis Testius”, de um jardim de veredas que se bifurcam ou mesmo da infinita Biblioteca de Babel. Vale destacar que o narrador do conto “O Zahir”, que o gênio argentino publicou na coletânea O Aleph, de 1949, é seu recorrente alter ego também chamado Borges.  

No interior do chapéu lê-se “palavras bordadas em latim, dizendo: Morsus Doloris”, ou seja: “vivo pesar”. De fato, Luccio Borges em pouco tempo “se tornara muito rico, tendo, porém, o incrível desgosto de nunca mais encontrar alguém para ser seu verdadeiro amor”. Morre sugado por um redemoinho, durante uma pescaria. Um fiscal da floresta chamado Ivan encontrou o chapéu e ficou com ele. Logo ganhou na loteria e logo morreu. Seu colega, tenente Flamarion herdou o chapéu, herdou a fortuna do pai e morreu assassinado pela jovem esposa italiana Paola, num crime perfeito. A viúva negra pouco pôde desfrutar dos bens do falecido, pois contraiu uma doença maligna e “morreu seca, miúda e esquelética”. Finalmente, padre Nelson, organizando os pertences da assassina para enviar para família, encontrou o chapéu “já gasto pelo tempo, interessante. À primeira vista, encantou-se com a beleza dele. Assim, rapidamente, enfiou-o na cabeça e saiu”. Não tardou para cobiça do clérigo ser castigada. O voto de pobreza deve tê-lo impedido de enriquecer, mas sua fé não o salvou de ser atropelado diante da loja de “vestimentas para defuntos” da qual o chapéu foi roubado sete anos antes. 

Ao introduzir na ação um personagem que até então havia sido um narrador passivo, Delermando Vieira insere de modo inusitado, no meio do texto, uma segunda epígrafe. Depois de Edmond Rostand, autor da tragicomédia romântica Cyrano de Bergerac, cita uma ode mortuária de Virgílio, o primeiro guia de Dante em sua viagem em busca de Beatriz. Virgílio, na Divina Comédia, personifica a razão. É preciso ser racional, e até mesmo maquiavélico, para conseguir ultrapassar as barreiras do inferno e do purgatório e merecer alcançar o paraíso amoroso. De natureza dantesca, “alma estranha demais para a vida”, o novo personagem não é como os anteriores. 

Da mesma forma que o Borges que narra “O Zahir”, o narrador de “O Chapéu” conhece a natureza extraordinário daquele acessório vermelho arroxeado unissex e imune as mudanças na moda. Desde que seu amigo Luccio faleceu, rastreou-o, estudou-o. Seu objetivo é usá-lo como uma indetectável arma de desamor, enviando-o em “um bonito embrulho” como presente a esposa. Ciente do perigo, não se deixou tentar pelo desejo de posse. Talvez por já ter encontrado “Clarissa, minha amante, meu amor”. O amor verdadeiro blindou-o contra a fascinação agourenta do chapéu. Delermando Vieira, em muitos aspectos, é um autor otimista.

Mas, possivelmente, a obra-prima de Delermando Vieira na prosa seja “A Luz das Velas de Sebo”, de 1988, também vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos. Na abertura do livro, o autor escreveu: “Não sei por que escrevo tais coisas, nem sei se tais coisas existem, mas, se as escrevo, é porque tais coisas existem”. Temos aqui uma reflexão espelhada e, novamente, borgiana sobre a figura do escritor como artífice do próprio mundo que engendra. Um homem de areia.

“A Luz das Velas de Sebo” é um livro temático. Composto por um conjunto de treze contos, mesmo número de “A Dor de Amar Demônios”, que dialogam com o misterioso, o mágico, o demoníaco. Não se trata, porém, do horror sanguinolento, escatológico, ao estilo de Clive Barker ou Stephen King. Tampouco filia-se a tradição do horror de ficção científica na linha cósmica de H. P. Lovecraft, onde a presença de criaturas anti-humanas revela o universo físico como um abismo a ser explorado. Os contos fantásticos de Delermando Vieira flertam mais com as narrativas de Edgar Allan Poe, onde o estado psicológico dos personagens é tão importante quanto os eventos mirabolantes que eles vivenciam. Em A Luz das Velas de Sebo, o inexplicável tanto pode ser fruto de maldições incontornáveis quanto de simples coincidências ou acasos. O que gera um medo ainda mais sutil, pois, implicitamente, significa que qualquer um pode passar pelas mesmas situações que os desgraçados protagonistas das treze histórias.  

Nada mais prosaico e cotidiano do que a descrição do cenário onde se passa o conto “Aparição”: “o casarão de adobe, pau-preto e palha, agarrava-se no negrume daquele espaço, enquanto, no chão bruto da cozinha, Dona Baiana, acocorada e cabisbaixa, pensava, virava a ideia, o pensamento”. Neste espaço tipicamente interiorano, que poderia constar em qualquer narrativa rotulada como regionalista, acontece o inusitado. Dona Baiana recebe a visita do fantasma de um jovem morto em um acidente de carro, que lhe suplica que interceda junto a sua família para que paguem uma promessa em seu nome. Somente assim vai poder descansar, deixar de ser uma alma penada. 

         O desenlace é feliz. A mensagem sobrenatural é assimilada com relativa tranquilidade, embora não sem estranheza. “A bandeira saiu bonita, animada; violeiros, sanfoneiros, tiravam a moda. A cantiga subia gostosa no meio daquela gente simples. A família toda seguia levantando versos, cantigas, orações e pedidos. Ia lá à bandeira. A mãe do devedor ia à frente, bem perto do violeiro mais animado. De casa em casa, iam cantando, rezando, pagando”.

Embora seja um escritor eminentemente cosmopolita, dialogando com literaturas do mundo todo, Delermando Vieira sabe que fantasmas não são privilégio apenas de casarões góticos franceses ou isoladas charnecas inglesas. O ensolarado cerrado possui seus mistérios, que o autor descreve com habilidade, entre folias de reis e bandeiras do Divino. Retratar esse sobrenatural rural de maneira sofisticada, sem apelar para condescendência ou soluções folclóricas rasas, é uma das maiores qualidades de A Luz das Velas de Sebo. O universal e o local misturam-se com harmonia em contos tematicamente dispares como “Eneida & Virgílio”, “Os Porcos”, “The End”, “Boris” e “O Homenzinho Amarelo”. Já pelos títulos é possível perceber a mescla entre “o de fora” e “o de dentro”.

Delermando Vieira, poeta e prosador monstruoso, emprestou beleza ao horror nosso de cada dia.

Ademir Luiz é escritor, historiador e crítico literário. É colaborador do Jornal Opção.

Referências

BORGES, Jorge Luis. Obras completas – vol. I. São Paulo: Globo, 2000.

HOFFMAN, T. A. O Homem de Areia. São Paulo: Ubu, 2022.

TIMPONE, Anthony (Org). Stephen King / Clive Barker – Mestres do terror. São Paulo: Editora Unicórnio Azul, 1998.

VIEIRA, Delermando. A dor de amar demônios. Goiânia: Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira, 1997.

TELES, José Mendonça. Dicionário do Escritor Goiano. Goiânia: Kelps, 2011.

TELES, Gilberto Mendonça. O Conto Brasileiro em Goiás. Goiânia: Kelps / Editora da PUC Goiás, 2007.

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