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Apocalipse canibal: o que um experimento com ratos pode ensinar aos humanos

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John B. Calhoun demonstrou como uma utopia pode resvalar pelo ralo comportamental e se transformar num apocalipse (Imagem: Yoichi R Okamoto)

Deutsche Welle

Entre as décadas de 1950 e 1970, enquanto o mundo estremecia diante da ameaça da superpopulação, um cientista americano dispôs-se a criar sua própria versão mini do apocalipse. E sua série de experimentos alterou a compreensão do comportamento em condições de aglomeração, com conclusões inquietantes que ressoam até hoje.

John B. Calhoun (1917-1995), destacado behaviorista e etologista do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) de Maryland, Estados Unidos, propôs-se uma questão aparentemente simples, mas com implicações profundas: o que acontece quando uma população tem tudo o que necessita?

A partir de experimentos com ratos e camundongos, ele constatou uma tenebrosa espiral de decadência social e colapso demográfico, que denominou “ralo comportamental” (behavioral sink): um terrível espelho da sociedade humana em decadência e um vislumbre do que poderia estar à espreita da humanidade.

Universo 25 e os efeitos da superlotação

Para seus experimentos, Calhoun criou “universos de camundongos”. O mais famoso, conhecido como Universo 25, começou em 9 de julho de 1968. Num recinto de 2,7 x 2,7 metros, criou-se um mundo ideal: comida e água ilimitadas, centenas de ninhos, temperatura perfeita e total ausência de predadores – uma “utopia dos camundongos”, como foi denominado.

No artigo intitulado “Morte ao quadrado: Crescimento explosivo e desparecimento de uma população de camundongos em 1973”, Calhoun descreve que no início eram quatro casais de roedores cuidadosamente selecionados. Tudo parecia correr às mil maravilhas: os animais se acasalavam, cresciam e prosperavam em seu paraíso artificial, a cada dois meses a população dobrava.

No entanto, alcançada a marca de 620 indivíduos, começaram a surgir problemas que nem o mais pessimista dos profetas poderia ter previsto: à medida que o espaço escasseava, a sociedade desmoronava inevitavelmente. Incapazes de encontrar seu lugar na hierarquia, os mais jovens se tornaram desajustados, as fêmeas solteiras se retiravam para os ninhos isolados nos níveis superiores, vivendo como ermitãs.

Enquanto isso, os machos alfa exibiam agressividade extrema, chegando até o canibalismo. No extremo oposto, os outros machos eram completamente apáticos, passando o dia a comer, beber e se cuidar, sem interagir com os demais. Porém, o mais perturbador era o comportamento das mães: oprimidas pelo estresse da aglomeração, muitas descuidavam de suas crias, ou as abandonavam e atacavam. A mortalidade infantil disparou, alcançando até 96% em algumas áreas.

Apesar de haver espaço e recursos para até 3.840 camundongos, a população da “utopia” nunca ultrapassou os 2.200. O último nascimento foi no dia 600 da experiência: a partir daí a sociedade roedora entrou no mencionado ralo comportamental: os animais se esqueceram de como se cuidar, cuidar das crias ou até interagir normalmente – uma dinâmica social com paralelismos alarmantes com as cidades humanas densamente povoadas.

Influências na academia e na cultura popular

Embora dramático, o crescimento e colapso do Universo 25 foi apenas uma parte de um corpo de pesquisa que incluiu numerosos experimentos com ratos e camundongos em condições controladas – sempre influenciados por “Um ensaio sobre o princípio da população”, do economista inglês Thomas Malthus (1766-1834).

A experiência encontrou eco nas inquietudes contemporâneas sobre a superpopulação humana. Em sua obra “The Population Bomb”, de 1968, o biólogo americano Paul Ralph Ehrlich despertou temores generalizados de um futuro distópico e superpovoado. Já a partir de sua frase de abertura: “A batalha para alimentar toda a humanidade terminou.” (Em 2011, porém, ele complementaria: “Fui otimista.”)

Em última instância, Calhoun não só tencionava entender as dinâmicas demográficas dos roedores, mas também proporcionar uma advertência sobre os possíveis futuros da humanidade, ao concluir que a aglomeração poderia provocar uma “morte do espírito”, mesmo estando satisfeitas todas as necessidades físicas.

Essas ideias ressoaram fortemente numa época preocupada com o crescimento urbano descontrolado e a explosão demográfica, deixando um rastro profundo tanto na cultura acadêmica como na popular.

Entre outros, inspiraram o romance infantil de ficção científica “Mrs. Frisby and the Rats of NIMH” (1971), de Robert C. O’Brien (transformada em 1982 no filme “The secret of NIMH” – no Brasil, “A ratinha valente”), em que alguns ratos escapam engenhosamente de condições semelhantes às criadas pelo etologista americano.

A pesquisa também influenciou o design urbano e se infiltrou na linguagem quotidiana. O escritor Tom Wolfe, por exemplo, adotou o termo “ralo comportamental” para descrever os males das cidades modernas.

Humanos não são ratos

Com o tempo, no entanto, a interpretação de Calhoun foi questionada. Alguns pesquisadores argumentaram que o problema não era a densidade da população em si, mas a concepção do experimento, que permitia aos roedores mais agressivos monopolizarem os melhores espaços, criando uma desigualdade artificial.

Críticos também objetaram que seres humanos não são camundongos. Estudos posteriores demonstraram que os humanos são capazes de se adaptar à superlotação de formas que são impossíveis para os bichos. Por outro lado, hoje em dia muitas cidades, por exemplo nos Estados Unidos, sofrem por uma densidade insuficiente, não excessiva, resultando em isolamento social e falta de moradia financiável.

Apesar de suas falhas e limitações, a “utopia dos camundongos” de John B. Calhoun segue sendo uma poderosa metáfora sobre a complexidade das sociedades. Para além da simples advertência sobre as aglomerações, ela convida a questionar as noções corriqueiras de progresso e bem-estar.

O que faz uma comunidade prosperar? Como equilibrar as necessidades individuais e as coletivas? O que fica muito claro é uma máxima que, embora óbvia, os humanos estão sempre esquecendo: por si só, a abundância material não garante uma sociedade saudável.

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