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Todos morreram envenenados de ouro

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Quem me contou a história abaixo jurou por todos os santos que ela é verdadeira. Eu particularmente não acreditei. E tenho os meus motivos para não acreditar, e o mesmo ocorrerá a quem passar os olhos neste texto. Pois bem. Muitas foram as explicações apresentadas, todavia ninguém ficou sabendo ao certo qual foi mesmo a causa exata da diarreia aguda que acometeu todas as pessoas da cidade. Na verdade, foi uma diarreia agudíssima, haja vista que sua duração envolveu meses, quando, no máximo, não passa de cinco dias quando bem tratada.

Isso resultou na morte de todas as pessoas da cidade. As que morreram primeiro ainda foram enterradas. As últimas não tinham ninguém para enterrá-las. O mau cheiro atingiu muitos quilômetros de distância, atraindo assim todos os urubus da região. Eram tantos voando sobre a cidade que impediam a chegada do sol. Mas isso acontecia quando algum cachorro corria em direção aos urubus para espantá-los do banquete pútrido. Quando voavam, a cidade ficava envolta num grande manto de trevas. Isso fez com que algumas pessoas de outras cidades a chamassem de cidade das trevas depois do seu fim.

A explicação, supostamente mais convincente, sobre a morte da cidade veio de um filósofo que morava nos arredores da cidade, mais precisamente numa cabana construída com bambu, no alto de uma montanha, que era bem arborizada e tinha nascente em sua encosta. Ele foi a única pessoa a escapar da diarreia maligna. Assim que a fome de ouro teve início na cidade, ele e seu cachorro Spinoza e foram embora. Na verdade, sua intenção de se mudar da cidade era de muitos antes da desinteria coletiva; vinha desde sua época de estudante numa cidade vizinha, quando leu “Walden ou a vida nos bosques”, de Henry David Thoreu. Ao contrário do poeta norte americano, que só morou dois anos à beira do Lago Walden, ele mudou de vez para o alto da montanha.

Para esse filósofo, essa grande diarreia estava relacionada à fome de ouro generalizada que tomou conta da cidade. Dela apenas os bichos escaparam. Ou melhor, quase todos. As galinhas levaram a pior na história. Na verdade, sua sina é sempre morrer numa panela. Os porcos também têm essa mesma sina. Há um poeta com boca do inferno que disse, em versos de “brazfêmia”, que “Deus cria homens como quem engorda porcos: para matá-los”.

Esse alvoroço maldito teve início quando alguém foi preparar algumas galinhas caipiras para uma festa religiosa que acontece anualmente na cidade e, dentro das moelas, encontrou alguns grãozinhos de ouro. Esse fato foi passado ao padre da igreja. Ele era bem branquelo e obeso. Tinha uma fome de porco velho. Durante a cerimônia de abertura do evento, o padre falou do ouro encontrado na moela das galinhas, dando a entender aos fiéis que havia interferência sua enquanto religioso naquele acontecimento.

Chamou de milagre o acontecimento e que ouro geraria muita riqueza ao povo da cidade, e assim até se poderia realizar uma reforma da igreja. Na verdade, mais uma reforma. Esse padre sempre arrumava um jeito de mexer no bolso dos fiéis. A ambição fez muita gente arregalar os olhos ouvir tal coisa. Esse padre tinha uma afinidade muito grande com todos os fiéis da cidade, mas com alguns rapazinhos essa afinidade era maior. Um deles, mais presente na paróquia, chegou a ganhar uma moto numa rifa feita com tramoia para beneficiar o jovem.

Tão logo o padre falou do ouro encontrado na moela das galinhas, teve início o alvoroço que pôs fim à cidade. A partir de então, começou-se a procura insana por ouro. Nem os ovos delas escaparam depois que um maluco que vivia perambulando pelas ruas esparramou que a gema era ouro derretido. Não ficou uma galinha viva para contar a história. Havia milhares delas.

Foi disso que veio a problema de diarreia. Além de procurar ouro dentro das aves, as pessoas as comiam depois. Era praticamente o dia todo apenas comendo galinha e procurando ouro. Após todas serem comidas, alguém disse que o ouro estava debaixo da terra e que era preciso ciscar como as galinhas para encontrá-lo, pois foi ciscando que as galinhas acharam. A partir dessa sugestão, as coisas pioraram (e muito). Nem água havia mais para as pessoas beberem, pois o córrego que abastecia a cidade foi destruído de tanto fuçarem como porcos os barrancos à procura de ouro. Naquela época, não havia cisternas por lá.

Foto: Reprodução

Todas as galinhas foram comidas. E a recorrência aos banheiros, bananeiras e sarobas foi tanta que até neurônios foram expelidos. Aí então um caos diabólico se instalou de vez. As pessoas começaram a procurar ouro em todos os cantos da cidade. À medida que a ganância pelo metal aumentava, a diarreia acompanhava o mesmo ritmo. Isso fez com que todo o estoque de papel higiênico da cidade se esgotasse rapidamente.

Os sabugos e as folhas das árvores serviram como alternativa. Depois nem isso mais estava sendo usado. Todas as fossas ficaram entupidas, e as pessoas então passaram a defecar em meias, sacos plásticos e jogar as fezes no quintal do vizinho. Isso deu início a uma guerra de merda, que também ocasionou muitas mortes por tiros, facadas, porretadas…

Mesmo em meio à guerra, ainda assim as pessoas prosseguiam com sua procura demente por ouro. Não ficou nenhuma casa em pé na cidade. E o solo todo revolvido na busca pelo metal. O mesmo se diga sobre os jardins e as árvores. Os passarinhos foram morar bem longe. A cidade ficou cheia de buracos e toda destruída como se tivesse enfrentado uma grande tempestade. As pessoas pareciam tatus dentro dos buracos. Porém nenhuma alma viva restou para contar a verdadeira história.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza

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