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A palavra como fetiche na poética de Sônia Elizabeth

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Jô Sampaio

Especial para o Jornal Opção

“A Lírica Poética da Manhã que Chega (ou um Tango Noturno Para o Anjo Aquiles)” é uma bem elaborada estrutura metalinguística em que a poeta mostra uma ferrenha luta em busca da perfeição artística e a consequente frustração advinda da impotência humana ante a relação autor-obra. Logo nos primeiros versos vem o dualismo da “aparência X essência”, num paralelo entre a imagem externa e imagem interna.

“Estive incinerada na vala comum / Dos seres que não raciocinam / Sabiam-me poeta à margem / Dos ritos da divindade / Sou o meio termo entre jornada / Que acaba e não principia. Não sabem de mim os mortais / pois que medro em qualquer esquina / Profundamente no caos e no abandono / Ainda assim destilo rimas / E sou lírica até os ossos / Nenhuma vaidade me subestima.”

Quem pode ser o emissor dos versos acima? A poeta ou a palavra? Talvez ambas, uma transubstanciada na outra, amalgamadas na mesma essência da criação poética. Surge um Anjo, em cuja presença se desdobra um jogo de sedução. Aquiles, não o herói de Homero, mas o “Achos” que em grego significa dor e aflição, donde a origem do nome Aquiles.

“O anjo chegou na madrugada, encolhido / Vestiu-se de estimas, calculou o alcance / Pueril (ou trágico) aterrissou em minha cama / Tive comigo rios e fontes de água puríssima”.

Sônia Elizabeth não entrega o ouro na bandeja. O leitor, como garimpeiro, necessita mergulhar profundamente no texto, fazer escavações. Decifrar enigmas, entender as metáforas, escapar das ambiguidades e navegar na polivalência das palavras.

Todo texto possui dos planos, o da expressão e o do conteúdo, ou seja, forma e substância.

Análises abordando apenas o aspecto formal não apresentam grandes dificuldades, uma vez que há estudos à exaustão sobre todos os gêneros literários — e o que não nos faltam são teorias aos montes sobre o estruturalismo, o formalismo, pragmática e coisas tais.

 Entretanto, captar a mensagem, penetrar na substância de um texto requer muito mais que conhecimentos teóricos. É postura que exige conexão com o texto, fruição, intuição, sensibilidade e, vezes há em que os sentimentos e impressões do leitor o levam a ilações e divagações que extrapolam o conteúdo do material escrito, seja este em prosa ou em verso.

Drummond nos deu o alerta “penetra surdamente no Reino das palavras, cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra”. Assim sendo, uso passos leves nos enigmas e hermetismo da poesia de Sônia que, muito sugere, muito se insinua, e esse mar de símbolos e plurissignificâncias linguísticas nos leva à advertência de S. Mallarmé: “Nomear um objeto é suprimir 3/4 do prazer do poema, que é feito da felicidade em adivinhar pouco a pouco”; sugeri-lo, eis o sonho.

“Atravessei o poema, de ponta a ponta / Vindo desaguar num mar só de carícias / O pregresso viajante num só voo / Fez a colheita que queria”. Eu tinha maçãs, poemas, cetros, um vestido / onde só as nuvens se descortinavam / Eu era todo um palco / para a dança angelical e seus precipícios / eu era a lama e o lenitivo / Depois que acordei o anjo se doutrinara / estava pervertido / Não sobrou quase nada / nem pudores, nem vestimenta, nem estigma.”

Vezes há em que, para confundir mais ainda o leitor, há trocas de funções entre o ser do enunciado e o ser da enunciação. Qual deles é a poeta? Qual deles é a palavra. Parece que os dois se transubstanciaram no mesmo cálice da poesia, conseguiram a unicidade e se nos oferecem em comunhão e em holocaustos, em luxúrias, em orgias que profanam o sacro e em sacrifícios que purificam o profano.

Em seu novo livro “A Lírica Poética da Manhã que Chega” Sônia Elizabeth demonstrou sagacidade, malícia, argúcia, competência, sensibilidade e muita originalidade na composição do seu poema, dividido em partes (cantos), nas quais a criatividade e o supremo desejo de se tornar instrumento da palavra arte (signo da Literatura), leva a poeta a delírios, a mistérios, a diálogos com um anjo (Aquiles), o sujeito Theo-lógico (teológico), a divindade, o demiurgo de quem a poeta espera receber a chave, o “abre-te, Sésamo” que lhe permita abrir as portas do reino absoluto da palavra. Ter o belo, a perfeição artística como espírito obsessor é desejo de todos que se mergulham no mundo da arte.

A relação autor-obra-público, constante da Teoria da Recepção, não raro inquieta e angustia a todos que se dedicam a produções artísticas. Vale lembrar aqui algumas obras que nos mostram a busca incessante pela perfeição, pelo belo, pelo arrebatamento e pelo desejo de imortalidade que emanam da comunhão profunda com a arte, em exemplos como “A Sociedade dos Poetas Mortos”, “O Retrato de Dorian Gray” e o conto machadiano “Um homem muito célebre”.

Esse livro concedeu à poeta Sônia Elizabeth o primeiro lugar no Prêmio da Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, em 2017. As orelhas são feitas pelo notável escritor Francisco Perna.

Jô Sampaio é poeta, contista e crítica literária. É colaboradora do Jornal Opção.

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