Morte na faixa: dados de atropelamentos em Goiânia evidenciam trânsito hostil para pedestres
Adelina Maria Resende, 79 anos, atravessava a faixa de pedestre praticamente apagada na Av. Santa Maria, no Setor São Francisco, em Goiânia. Era começo de noite quando o motoqueiro apressado, que subia a ladeira em direção à Rodovia dos Romeiros, não conseguiu para a tempo. Com o impacto da colisão, a mulher foi arremessada alguns metros à frente.
O marido de Adelina, Jales Resende, lembra que, ao ver o corpo da esposa estirado no chão, tentou chamá-la. “Dia 29 de abril ela foi acidentada por um motoqueiro, agora estou só eu e meus cachorrinhos. Igual a ela, não vai ter não. 56 anos de casados e nunca tivemos uma divergência de nada, é uma falta irreparável, muito difícil falar dela. Ela tava (sic) com a perna quebrada, foi uma fratura exposta. Tentei chamar o nome dela, mas ela não respondeu”, contou ao Jornal Opção.
Ela merecia tudo que eu fiz pra ela. Quando a gente casou, o sonho dela era ter uma casa. Começamos a construir, fizemos só um cômodo e depois foi erguendo mais até terminar o lugar onde a gente criou nossos filhos
O trecho onde Adelina foi atropelada é conhecido por moradores como um local perigoso, com muitos acidentes e inseguro para pedestres. No local, poucos metros acima, tem um colégio público para alunos do ensino médio que precisam se arriscar na travessia da avenida de duas pistas. As faixas de pedestre elevada foram instaladas, mas não antes de uma série de atropelamentos. “Povo abusa muito, tem motoqueiros que vem empinando motos. O trânsito nosso em Goiânia é muito abusivo, as pessoas gostam de fazer besteiras. Muitas pessoas foram atropeladas aqui nesse trânsito indecente e nada é feito por causa dessa lei falha”, diz Jales.
Epidemia de acidentes
A história de Adelina se junta à de outros 27 pedestres que tiveram a vida ceifada por atropelamentos na Capital em 2024, de acordo com dados da Delegacia de Crimes de Trânsito (Dict) solicitados pela reportagem. O Departamento de Trânsito de Goiás (Detran) informou que tem promovido uma “série de ações educativas em Goiânia com o objetivo de conscientizar motoristas e pedestres sobre a importância da travessia segura nas faixas de pedestres”.
“Até o momento, já foram realizadas mais de 110 ações em vias públicas, destacando a importância da educação no trânsito para a construção de um ambiente mais seguro. Essas atividades incluem campanhas informativas, abordagens diretas em pontos estratégicos da capital e blitz educativas, todas com o propósito de reforçar o respeito às normas de trânsito”, explica.
O órgão informa que a educação de trânsito tem sido o pilar as iniciativas para garantir a segurança viária e reduzir acidentes, especialmente aqueles que envolvem pedestres. “O Detran-GO continua empenhado em suas ações educativas, buscando transformar a mentalidade dos cidadãos e promovendo uma cultura de respeito e segurança nas ruas de Goiânia”, finaliza.
40 vidas em 2023
No ano passado, de acordo com o Boletim Epidemiológico do Programa Vida no Trânsito de 2024 da Prefeitura de Goiânia, 40 pessoas morrem vítimas de atropelamentos. O pedestre é o segundo grupo que mais morre vítima de acidentes de trânsito em Goiânia, mas é classificado como o usuário das vias mais vulneráveis. Em 2023, 20,3% das lesões fatais no trânsito da Capital ocorrem com este público.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os acidentes de trânsito são uma das principais causas de morte, especialmente entre jovens de 15 a 29 anos. No Brasil, os números são alarmantes. De acordo com o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, o país registra anualmente cerca de 30 mil mortes por acidentes de trânsito.
Em 2023, foram contabilizados mais de 35 mil óbitos nas vias brasileiras, sendo que pedestres, ciclistas e motociclistas representam as vítimas mais vulneráveis nesta estatística. A OMS classifica o Brasil como um dos países com as taxas mais elevadas de mortalidade no trânsito na América Latina.
As causas dos acidentes são diversas, mas a imprudência dos motoristas, a falta de infraestrutura adequada e a ausência de fiscalização rigorosa são apontadas como fatores determinantes. O excesso de velocidade, o uso de celulares ao volante e a condução sob efeito de álcool ou drogas são comportamentos comuns que aumentam os riscos nas estradas e avenidas do país.
Infraestrutura ignora pedestre
Nos projetos de infraestrutura urbana, o pedestre muitas vezes parece ser uma figura invisível. A ausência de sinalização adequada, faixas de pedestre apagadas e a falta de iluminação em pontos críticos são exemplos de problemas que afetam diretamente a segurança de quem se locomove a pé. A cidade de Goiânia, apesar de ser uma metrópole crescente e moderna, ainda apresenta deficiências graves em seu planejamento viário quando o assunto é a proteção de pedestres.
O professor especialista em trânsito do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG), Marcos Rothen, explica que essa negligência é o reflexo de um modelo de desenvolvimento urbano focado no automóvel, onde as prioridades estão na fluidez do tráfego de veículos, e não na segurança do trânsito. “Por exemplo, se a gente der uma olhada ali no Jamel Cecílio, ali foi feito aquele viaduto e o pedestre foi esquecido”, diz.
Rothen também cita locais como a Praça do Cruzeiro e outros viadutos como armadilhas para o pedestre. “Nesses lugares não tem onde o pedestre atravessar. Ele é atravessado. Ali você corre risco, tem que atravessar correndo e ainda tem o risco de queda quando chega nas calçadas porque estão destruídas ou obstruídas”, relata.
Gestão fragmentada
Para especialistas, o maior desafio de lidar com a situação do trânsito é a consonância entre os órgãos planejadores e executores. Na avaliação da professora da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de Goiás (FCT-UFG), Poliana de Souza Leite as ações não são estratégicas e nem concentradas. “Temos uma secretaria para cuidar da mobilidade e uma para cuidar da infraestrutura. Quem faz o planejamento não é o mesmo que faz a execução e isso está deixando a desejar no resultado. Hoje existem 78 obras (construção de empreendimentos) acontecendo no Setor Marista, isso em um lugar onde você já tem uma saturação do meio viário. Quando esses prédios ficarem prontos vamos ter um aumento significativo no número de deslocamentos de todos os tipos de veículos e também de pedestres, novamente, em um local já saturado”, explica.
Ela conta que os congestionamentos gerados pela desorganização do trânsito aumentam os riscos para o pedestre. Além disso, ela expõe que o planejamento da segurança no trânsito para o pedestre deve ir muito além das faixas de pedestres e botoeiras em semáforos. “Todo sistema tem que ser construído pensando no pedestre. O nosso sistema é construído pensando no carro. Enquanto não for pensado no pedestre, a gente não vai ter solução adequada ao pedestre”, conta.
Plano de Mobilidade
A Prefeitura de Goiânia instituiu recentemente o Plano de Mobilidade Urbana (PlanmobGyn) e outros órgãos de gestão de mobilidade, como o Conselho de Mobilidade Urbana (ComuGyn) e o Observatório da Mobilidade Urbana (OmuGyn). A pesquisa que embasou o PlanmobGyn foi conduzida por meio de um convênio com a Universidade Federal de Goiás (UFG) e utilizou uma abordagem de coleta de dados sobre deslocamento diário dos moradores de Goiânia.
O estudo sobre mobilidade realizado pela UFG, que serviu de base para o PlanmobGyn, revelou que o uso de transporte individual em Goiânia aumentou de 35% para 59,6% entre 2000 e 2019, enquanto o transporte coletivo decaiu de 37,7% para 37,1%. Por outro lado, o transporte por bicicleta aumentou de 4,2% para 12%. A pesquisa, que também analisou dados de bilhetagem eletrônica e outras fontes que permitiu à Prefeitura planejar as ações de mobilidade na cidade, incluindo a identificação de vias propensas à saturação e regiões com maior concentração de deslocamentos.
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